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Katia Geni Cordeiro Lopes

  • Gravura do século XIX retrata a Quinta da Boa Vista e o prédio onde funcionou a escola de instrução primária e artística a partir de 1868. (Imagem: FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL)Por iniciativa do imperador D. Pedro II, uma casa comum situada nas dependências da Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, ganhou nova função. Em 4 de setembro de 1868 foi inaugurada no local uma escola de instrução primária e artística. O que tinha de original era o público ao qual deveria atender: os filhos e os agregados dos fâmulos, os empregados internos do Paço de São Cristóvão. Sua missão era “preparar e encaminhar os filhos e as filhas de seus servidores”, que deveriam se constituir em “bons cidadãos e boas mães de família”. 
     
    Dois anos depois, com a abertura de um curso noturno, o local passou a ser conhecido como Escola Diurna e Noturna da Imperial Quinta da Boa Vista. Este, porém, não seria seu último nome durante a monarquia. A partir de 1882 ela passou a ocupar outro edifício e recebeu o título de Escola Mista. A inauguração do novo prédio contou com a presença de “Suas Majestades” e do mestre-escola Joaquim Sabino Pinto Ribeiro, um professor dedicado e entusiasmado com a profissão, cujos registros indicaram a sua atuação na escola do Imperador no período de 1868 até 1882. O evento teve também a participação da banda de música da Imperial Quinta, composta por 30 negros libertos, que deveriam tocar o Hino Nacional e o que mais lhes fosse ordenado. 
     
    Planejado para receber ar e luz em abundância, o edifício contava com um vasto salão dedicado ao ensino primário, um galpão para o ginásio, uma dependência para oficina e o salão da biblioteca, utilizado também para aulas de desenho. Sua localização era privilegiada, sendo acessível a todos os moradores da região.
     
    Segundo o regulamento da Escola Mista da Imperial Quinta da Boa Vista, o ensino “distribuído” na instituição seria gratuito e obrigatório, compreendendo dois cursos: o de ciências e letras e o de belas artes. O ensino prático de diversos ofícios complementaria a formação: enquanto os estudantes do sexo masculino participavam de oficinas de carpinteiro, marceneiro, torneiro de metais e madeiras, ferreiro e serralheiro, as meninas tinham aulas de costura e corte de vestidos, bordados, fabrico de flores, desenho e aquarela, condizentes com sua “delicada organização”. 
     
    No Livro dos Visitantes, a instituição é por vezes representada como um modelo que poderia ser difundido em todo o país. A imagem de uma escola padrão é ressaltada, por exemplo, nas palavras do jornalista e professor Otaviano Hudson, que a visitou em agosto de 1883. Ele felicita o “grande cidadão da Pátria” pelo serviço “filantrópico e humanitário que prestou às crianças”, por ter fundado “por sua conta e custa este estabelecimento de educação popular”. Era desejo de Hudson que “os governantes presentes e futuros” copiassem o exemplo dado pelo imperador. Palavras que apontavam para a escassez de espaços públicos de instrução primária na Corte Imperial, apesar do progressivo aumento no número de escolas públicas ao longo daquele século. 
     
    Em uma segunda visita à instituição, no ano seguinte, o jornalista exalta novamente a figura de D. Pedro II, desta vez destacando o episódio em que o imperador abriu mão da estátua que seria erguida em sua homenagem, por ocasião da “rendição de Uruguaiana” (1865), na Guerra do Paraguai. Para o monarca, os recursos previstos para a honraria deveriam ser destinados à instrução pública. Tal decisão teria desencadeado uma mobilização pela construção de escolas públicas a partir da década de 1870. 
     
    De fato, na carta em que rejeita a escultura, D. Pedro II incentiva a aplicação dos recursos na construção de escolas primárias e no melhoramento de outros estabelecimentos de ensino. Um dos resultados dessa orientação foi a Escola de São Cristóvão (atual Escola Municipal Gonçalves Dias), inaugurada em 1872: para sua edificação, foram utilizados fundos arrecadados pela Associação Comercial com o objetivo de erguer o busto do imperador. 
     
    O plano de ensino, os “ares” de ordem e tranquilidade presentes em todos os ambientes e o “adiantamento dos alunos” da Escola Mista também foram louvados no Livro dos Visitantes. A atuação dos professores foi igualmente notada. Conselheiro do Império, Manoel Francisco Correia assinala que o ato de inaugurar a escola não se completaria se o “augusto fundador” não tivesse encontrado um corpo docente dedicado para regê-la, destacando os nomes do então diretor e professor Joaquim Alves Ferreira da Gama e de sua esposa, D. Anna Leonor de Castro Maigre da Gama, responsável pelo ensino de meninos e meninas até 8 anos de idade. Por sua reconhecida competência, o professor permaneceu na escola mesmo depois da Proclamação da República (1889).
     
    A excelência do ensino na Quinta deu origem a inevitáveis comparações entre a escola do Imperador e os demais estabelecimentos do gênero – principalmente os mantidos pelo governo. O professor primário Luiz Augusto dos Reis, que visitou a escola em dezembro de 1883, afirmou estar “deslumbrado”, e reivindicou em seguida: se todas as instituições de ensino brasileiras fossem como aquela, e no dia em que o professorado estivesse bem remunerado, se teria dado o primeiro passo para o engrandecimento nacional. 
     
    Líderes do movimento abolicionista vinham se dedicando à fundação de instituições de ensino noturnas e gratuitas voltadas para a educação de negros libertos e até de escravos. José do Patrocínio, que esteve na Escola Mista em outubro de 1884, viu ali os instrumentos de que o moderno ensino se servia “para desbravar as inteligências e prepará-las para a sementeira da verdadeira instrução”. Para ele, de lá sairiam homens capazes de “ver” e reconhecer “no passado a mão benemérita que os levou, pelo livro, à altura de compreenderem quais os seus destinos sociais”. No mesmo mês, João Clapp, que esteve à frente da Confederação Abolicionista, visitou o estabelecimento como um dos representantes da “Escola do Clube dos Libertos contra a escravidão de Niterói”, e louvou o imperador por ter fundado a “escola modelo”. 
     
    A presença dessas personalidades é um forte indício da existência de educandos negros na escola criada por D. Pedro II. Essa evidência é reforçada pelo próprio regulamento da Escola Mista, que não apresentava qualquer interdição aos indivíduos por sua condição civil – ao contrário, por exemplo, do Regulamento da Instrução Primária e Secundária do Município da Corte, que expressamente negava aos escravos o acesso às escolas públicas primárias da capital do Império. Antes mesmo de receber o título de Escola Mista, aliás, a instituição fundada pelo monarca já oferecia um curso noturno destinado principalmente àqueles que durante o dia estavam entregues ao trabalho.
     
    Em carta escrita em 1871 para o conselheiro Antonio Henrique de Miranda Rego, o mestre-escola Joaquim Sabino Pinto Ribeiro anuncia a matrícula de sujeitos recém “emancipados do estado servil”. Muitos deles pertenciam à Escola de Música da Imperial Quinta, de onde certamente se originou a banda convocada para a solenidade de inauguração do novo prédio da Escola Mista, anos mais tarde. Na carta, o mestre-escola submete ao julgamento do conselheiro sua decisão sobre os novos alunos, adiantando, no entanto, que lhe parecia “não haver inconveniente algum por tais admissões”. Temeroso pelas repreensões cabíveis ou convencido de ter tomado a decisão correta, a questão é que o documento expressa a inclinação do professor por uma resposta favorável. Ao listar os nomes dos libertos matriculados, Sabino informa que quatro deles não seriam analfabetos – o que indica a circulação desses sujeitos em espaços que lhes propiciaram o contato com as letras. Quem os teria ensinado? Em que circunstâncias teriam aprendido a ler e a escrever? 
     
    A carta de mestre Sabino expressa o movimento dos negros na busca pela aquisição do código letrado, pois anuncia que os indivíduos empregados e residentes na Imperial Quinta, “ultimamente emancipados do estado servil”, se apresentavam ao professor com o objetivo de serem admitidos às lições noturnas. Provavelmente enxergavam a escola como um caminho para a superação das barreiras impostas a eles, em uma sociedade que discriminava as pessoas pela cor de sua pele. 
     
    Katia Geni Cordeiro Lopes é autora da dissertação “A presença de negros em espaços de instrução elementar da cidade-corte: o caso da Escola da Imperial Quinta da Boa Vista” (UERJ, 2012).
     
    Saiba mais
     
    CUNHA, Perses Maria Canellas da. Educação como forma de resistência. O caso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos.  Dissertação de Mestrado, Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2004. 
    FONSECA, Marcus Vinícius. A educação dos negros: uma nova face do processo de abolição da escravidão no Brasil. Bragança Paulista: Edusf, 2002. 
    SILVA. Adriana Maria P. da. Aprender com perfeição e sem coação: uma escola para meninos pretos e pardos na Corte. Brasília: Editora Plano, 2000.
     
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    Série Heróis de Todo Mundo – Projeto “A Cor da Cultura”, Canal Futura. Disponível em: www.acordacultura.org.br