Luiz Estevam de Oliveira Fernandes

  • Nós, historiadores, somos treinados para ler e interpretar. E foi com isso em mente que viajei ao México em 2007: mergulhei em bibliotecas e arquivos atrás de fontes e bibliografia para meu doutorado. Por uma questão de logística, hospedei-me próximo do entroncamento de duas avenidas importantes do centro da capital: o Paseo de la Reforma e a Insurgentes, de onde podia facilmente me lançar para qualquer ponto da cidade.

    Nos fins de semana precisava emergir. Nessas horas, conhecia pontos turísticos da Cidade do México. Como sempre, não resisti a entrar na Catedral Metropolitana. Criei uma espécie de ritual: procurar o Señor Hernández, guia turístico do centenário templo católico. Fascinava-me como ele contava sobre os astecas terem cidades e governo como na Antiguidade europeia, como a Conquista do México forjara um povo mestizo, entre outras preciosidades enciclopédicas. Sabia o nome de todos os santos, anjos e arcanjos, tronos e potestades retratados nas capelas da catedral. Como um professor, cobrava-nos informações que acabara de dar; benzia-se com frequência e, em nenhum dos retornos que fiz, lembrou-se de mim.

    Ao voltar à quitinete que aluguei, era impossível não ver a imponente estátua do último tlatoani (governante) asteca, Cuauhtémoc. Bem ao gosto acadêmico do indigenismo neoasteca dos anos 1880, o líder indígena foi retratado por Miguel Noreña, expoente da escultura neoclássica. O Cuauhtémoc de bronze tem pose heroica, veste roupas greco-romanas com um elemento indígena – penas – ainda que elas também tenham enfeitado aos borbotões elmos da antiguidade clássica.

    Devo muito às bibliotecas e aos arquivos, aos professores que me formaram. Mas os insights capazes de transformar minha pesquisa sobre mestiçagem no México me foram dados pelo acaso: uma estátua e um guia turístico!

    No primeiro caso, o despertar para a materialidade: ler e interpretar aquilo que mora fora do texto escrito, outros lugares oficiais de memória, como as estátuas. Feitas para parecerem atemporais, para naturalizarem o que deve ser eternizado, elas são carregadas de intencionalidades: tiveram autor, financiador e contaram com políticas públicas que as tornaram possíveis. Debatidas, ignoradas ou celebradas, revelam-se documentos, testemunhos de tensões e paixões, interesses e descasos.

    No segundo, o mexicano especialista na catedral serviu-me de guia para estudar a formação de uma poderosa memória. Foi por meio das recordações das lições do Sr. Hernández que nasceu minha tese sobre como se deu a apropriação do passado indígena na composição dessa identidade mestiça enraizada na memória coletiva e na intelectualidade daquele país ao longo dos séculos XIX e XX.

    Fui ao México como leitor de textos. Voltei como historiador, com a crença de que o passado deve ser investigado como um todo, repouse ele onde for: num livro, num arquivo, numa estátua ou num guia de catedral.

     

    Luiz Estevam de Oliveira Fernandesé professor da Universidade Federal de Ouro Preto e autor de Patria Mestiza: A invenção do passado nacional mexicano (séculos XVIII e XIX), (Editorial Paco, 2012).