“Considerando o modo irreverente como é tratada a relação da Igreja com o Estado; considerando conter o mesmo mensagem ideológica contrária aos padrões de valores culturais coletivamente aceitos no país (...) resolve proibir a exibição em todo território nacional do filme de Glauber Rocha, Terra em transe.” O termo, parte da Portaria nº 16/1967, assinada por A. Romero Lago, chefe do Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP) do período, é um dos 5 mil documentos sobre a censura a filmes nacionais, reunidos pelo projeto “Memória da Censura no Cinema Brasileiro – 1964/1988”. Processos, material de imprensa e relatórios do Departamento de Ordem Política e Social (Deops) referentes a 175 filmes, como Pra frente, Brasil!, de Roberto Farias, e Como era gostoso o meu francês, de Nelson Pereira dos Santos, integram esse inventário feito pela pesquisadora Leonor Pinto, doutora em Cinema pela Universidade de Toulouse, França, hoje disponível no site www.memoriacinebr.com.br, com patrocínio da Petrobras.
O interesse da pesquisadora pelo tema começou em 1982, depois de assistir ao filme Pra frente, Brasil!, que mostra dois Brasis: o do futebol que brilhava na Copa do Mundo, e o dos porões da ditadura, com torturas e mortes. “Fui educada dentro da ditadura. Eu não sabia que no meu país existia tortura ou censura. Cheguei a colar o plástico ‘Brasil: ame-o ou deixe-o’ no fusca verde da minha mãe. Depois que saí da sessão, percebi que a minha geração tinha sido abafada pela ditadura. Decidi mergulhar de cabeça no assunto a fim de reconstituir minha própria história”, conta. Segundo ela, o portal vai proporcionar um acesso democratizado aos documentos que estão no Arquivo Nacional de Brasília. “Quis dividir com todo mundo o material que consultei para minha tese. Nem todos podem se debruçar sobre os documentos”, diz.
Leonor conta ainda que, no período de abertura – quando é decretado o fim do AI-5, em 1979 –, a censura saiu dos cinemas e migrou para a televisão, que tinha grande audiência no país. “A censura foi para onde estava o público. O mesmo filme que era liberado no cinema, tinha cenas cortadas na televisão. Caso do filme Pixote, que tem pareceres da censura liberando a exibição no cinema e quatro laudas de corte para a televisão”, conta.
Ainda à espera de patrocínio, a segunda parte do projeto quer falar sobre as pornochanchadas. “Os censores liberavam a pornochanchada para afastar ainda mais o brasileiro do cinema nacional, já que esse tipo de filme não era aceito pela sociedade conservadora”, explica a pesquisadora. Leonor já listou mais de trezentos filmes do gênero. “Percebi que o papel da minha geração é reconstruir esse espaço, preservar essa história, os acervos. Quando fazemos isso, conseguimos ter uma função e diminuímos o abismo deixado por quase trinta anos de censura”, acredita.