Luz, movimento e emancipação

Eneida Queiroz

  • Fotografia da pintora em seu ateliê (Museu Histórico Nacional/IBRAM/MINC)“Ó abre alas, que eu quero passar”. Quando Chiquinha Gonzaga escreveu essa marchinha, em 1899, só pretendia fazer seu cordão Rosa de Ouro ganhar o carnaval. Mas o famoso refrão bem representa o desejo de liberdade profissional das mulheres artistas naquela virada de século. Nessa batalha, Chiquinha não estava sozinha. Ela na música, outras no teatro, na dança, na literatura. Ou nas artes plásticas, como a pintora Georgina de Albuquerque (1885-1962).

    Poucos a conhecem, mas Georgina é uma das precursoras da pintura impressionista no Brasil, juntamente com os pintores Eliseu Visconti, Antônio Parreiras e Lucílio de Albuquerque. Foi a primeira mulher a pintar um quadro de temática histórica no país, a primeira mulher diretora da Escola Nacional de Belas Artes.

    O papel feminino na história da arte, durante o século XIX, consistia basicamente na expressão de sua condição submissa. Era o olhar masculino que ditava as regras. Mulheres apareciam como tema de quadros, raramente como autoras. No Brasil, até o acesso à aprendizagem técnica da pintura lhes era vedado. A permissão para a entrada de mulheres na Academia Imperial de Belas Artes só se deu em 1879 – e mesmo assim com restrições: a elas era proibida a prática de desenho natural com modelo nu. Sob o ideal de preservar a honra das damas de “boa família”, dificultava-se o aprimoramento da técnica da pintura corporal. Além disso, enquanto os homens se dedicavam às pinturas de temas nobres – como as grandiosas pinturas históricas de Pedro Américo (Batalha do Avaí, 1877) e Victor Meirelles (Batalha dos Guararapes, 1879) – as mulheres tinham que se contentar com pinturas de interiores e naturezas mortas, gêneros de menor valor no mercado artístico e que nunca as fariam configurar no rol dos grandes artistas. A crítica de arte considerava amadora a produção feminina nos Salões de Exposição. De maneira geral, elas eram vistas como seres de menos capacidade intelectual em relação aos homens.

    As primeiras mudanças nesse sistema fechado começaram a ocorrer no final do século XIX. Além da entrada de mulheres na Academia Imperial de Belas Artes, foi criado um Ateliê Livre desligado da instituição. Com o advento da República, em 1889, os velhos mestres foram aposentados – entre eles Victor Meirelles e Pedro Américo – e uma nova geração assumiu a escola. O escultor Rodolfo Bernardelli tornou-se diretor da Academia de Belas Artes e seu irmão, o pintor Henrique Bernardelli, era professor. Logo em 1890, a academia passou a se chamar Escola Nacional de Belas Artes (Enba), suprimindo o “imperial” do nome e assumindo a intenção de promover renovações.

    Foi nessa escola um pouco renovada que alguns alunos passaram a pintar com técnicas impressionistas. O impressionismo já era uma realidade na Europa desde o final da década de 1860, fortaleceu-se nas décadas de 1870 e 1880, tendo chegado tardiamente ao Brasil. Esta foi uma das primeiras marcas do processo de mudanças no academicismo nacional. O impressionismo está na transição entre o academicismo e as vanguardas modernas, como o expressionismo, o cubismo e o futurismo. Foi “a primeira revolução pictórica da modernidade, que assinalou o nascimento de um dos mais belos sonhos do homem – a grande e maravilhosa aventura da arte moderna”, descreve o crítico de arte Wilson Rocha. Para ele, o impressionismo é um tipo de “pintura repentina, de uma visão momentânea, que não se repete, conferindo extraordinária ênfase à cor”.

    A luz e o movimento em pinceladas soltas são os principais elementos das pinturas impressionistas, geralmente feitas ao ar livre para que o pintor possa capturar as variações de cores da natureza. E entre os precursores do impressionismo brasileiro estava Georgina de Albuquerque.

    A pintora com o marido, Lucílio de Albuquerque, em 1907 (Museu Histórico Nacional/IBRAM/MINC)Sua trajetória é exemplar. Como ela, as primeiras mulheres a conseguirem romper a barreira doméstica e se lançarem no mercado artístico eram moças da elite. Afinal, dedicar-se a uma atividade artística requer algum tempo livre, e elas provinham de famílias que podiam dividir as tarefas domésticas com escravas ou empregadas. Nascida em Taubaté em 1885, ela teve aos 15 anos de idade as primeiras noções artísticas ao participar de aulas de pintura com o artista italiano Rosalbino Santoro (1858-1920), que percorria todo o interior paulista, juntamente com outros artistas, retratando paisagens da região. Em uma viagem à capital paulista, Georgina impressionou-se com uma exposição do pintor Antonio Parreiras. Começava a decidir tornar-se pintora. Aos 19 anos mudou-se para o Rio de Janeiro, matriculou-se na Enba e foi aluna de Henrique Bernardelli. Lá conheceu um aluno mais antigo, Lucílio de Albuquerque, com quem se casaria em 1906. Nesse mesmo ano, Lucílio venceu um concurso da Enba que concedia como prêmio uma viagem à Europa. Os dois viajaram para Paris e lá residiram por cinco anos. Uma nova vida começaria para Georgina, e sua pintura jamais seria a mesma: passou a incursionar definitivamente na arte impressionista.

    Mesmo em Paris, as mulheres não podiam frequentar a Academia de Belas Artes até o início do século XX. Em compensação, há décadas vinham surgindo outras escolas mais liberais na capital francesa, como a Academia Julien, onde mulheres podiam ter aulas de pintura. Georgina matriculou-se na École National Supérieur dês Beaux-Arts, mais tradicional, e também na Academia Julien. Ao retornar ao Brasil, em 1911, o casal promoveu uma grande exposição apenas com obras próprias no Salão Nacional de Belas Artes. Entre as pinturas que se tornaram mais reconhecidas estavam o quadro Despertar de Ícaro, de Lucílio, e o quadro Supremo amor, de Georgina.

    Em 1922, Georgina ousou pintar uma tela com tema histórico, território até então reservado aos homens. O quadro Sessão do Conselho de Estado que decidiu a Independência foi uma das primeiras pinturas históricas feitas com a técnica do impressionismo no país. Georgina deu destaque não apenas aos homens do Conselho de Estado, mas também à figura da imperatriz Leopoldina, esposa de D. Pedro I. Presidindo a reunião do Conselho, Leopoldina decidia pela Independência do Brasil. O príncipe, que estava com sua comitiva às margens do riacho Ipiranga, ao ler as cartas sobre os acontecidos no Rio de Janeiro, referendou a proposta da Princesa Regente. Percebe-se que Georgina, conhecedora deste episódio, elegeu-o como tema para dar destaque à importância das mulheres na história.

    Além dos inúmeros prêmios recebidos nos “salões” anuais, conquistou várias medalhas em exposições internacionais, como a Exposição Pan-americana de São Francisco e a de Mulheres Pintoras e Escultoras em Nova York, ambas em 1925. Também foi premiada no Salão de Belas Artes de Buenos Aires. A partir de 1927, Georgina tornou-se professora da Enba, primeiro como livre-docente, depois como catedrática. Em 1952, tornou-se diretora da Escola, a primeira mulher a ocupar o cargo. Fundou ainda o Museu Lucílio de Albuquerque, na residência do casal em Laranjeiras, em homenagem ao marido que havia morrido em 1939. Ali ela instituiu cursos de pintura e desenho para crianças – também uma inovação, pois quase não havia no Brasil instituições que direcionassem o estudo das artes ao público infantil.

    Georgina trabalhou todos os gêneros de pintura: entre seus quadros figuram retratos, naturezas-mortas, nus, cenas do cotidiano, paisagens e marinhas. Sua obra está representada nos principais museus brasileiros, em especial no Museu Nacional de Belas-Artes do Rio de Janeiro, como os famosos quadros Raio de sol e Dia de verão; no Museu Histórico Nacional, onde se encontra o quadro Sessão do Conselho de Estado que decidiu a Independência; na Pinacoteca do Estado de São Paulo; e em Niterói, no Museu Antônio Parreira – o mesmo cuja arte encantou uma ainda jovem aspirante à pintora.

    Eneida Queiroz é servidora do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram).

    Saiba mais:

    PEREIRA, Sonia Gomes. Arte brasileira no século XIX. Belo Horizonte: C/Arte, 2008.

    PRIORE, Mary del (org.).História das mulheres no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2010.

    SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e as desenvolturas dos artistas franceses na corte de D. João. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

    ZACCARA, Madalena. “Uma artista mulher em Pernambuco no início do século XX: Fédora do Rego Monteiro Fernandez”. Revista 19&20, Rio de Janeiro, v. VI, n. 1, jan./mar. 2011. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/artistas/frm_mz.htm.