O destino da expedição francesa era a região do Equador, para estudar a circunferência da Terra. A trajetória deste grupo de cientistas ilustrados pela região andina foi longa e repleta de percalços, como enfermidades e atritos políticos, com complicadas disputas internas. No meio dos Andes, eles se separaram.
Entre eles estava o naturalista Charles-Marie de La Condamine (1701-1774). Depois de oito anos na região, este membro da Academia Científica de Paris resolveu descer as montanhas e atravessar os rios amazônicos, chegando até o Brasil. O relato desse longo percurso, publicado em 1751, revelou uma natureza praticamente desconhecida dos europeus e inspirou outros pesquisadores, como o alemão Alexander Von Humboldt (1769-1859).
O cientista francês foi o pioneiro de uma nova geração de cronistas que percorreu e registrou informações sobre a América portuguesa. No início do século XVIII, muitos já haviam visto e descrito diferentes áreas do atual território do país, inclusive a Amazônia. Enquanto portugueses mostravam o novo mundo carregado de um imaginário fantasioso, espanhóis se baseavam num realismo objetivo. Somente os holandeses escapavam dessas duas projeções, procurando entendê-lo de modo mais racional.
Com La Condamine, inaugurou-se uma época de descrições baseadas na racionalidade iluminista, com uma metodologia cartesiana e científica, sem estar vinculada à fé ou à religião. Mas a narrativa de sua viagem ao continente americano também estava recheada de elementos típicos da literatura de sobrevivência: descrições puramente técnicas e empíricas mesclavam-se a exotismos, curiosidades e desventuras do percurso. Ainda que a Botânica e a Zoologia não fossem sua especialidade, o naturalista procurava ressaltar tanto o exotismo quanto o proveito prático das plantas e dos animais desconhecidos que ia encontrando. Por isso o utilitarismo – doutrina que vê algo a partir de sua utilidade imediata para o homem –, típico do pensamento ilustrado, aparecia constantemente em seu texto, sobretudo quando ele se defrontava com a enorme biodiversidade da floresta amazônica.
Em vários momentos, mostrava essa influência por meio de práticas científicas – das quais era um legítimo representante. Mas não deixava de lado o aprendizado adquirido com os moradores daqueles territórios. Como lembrou certa vez, só ouvia falar ali “dos trabalhos que exigiram a descrição exata dessas plantas e sua redução a classes, gêneros e espécies. O que irá ocorrer se aí fizermos entrar o exame das virtudes que são atribuídas a várias delas pelos nativos da terra?”
Assim, procurava entender as propriedades dos produtos amazônicos curare (veneno obtido de cipós e plantas), quinino (substância da casca da quina usada para curar a malária) e borracha. Avaliava as principais características de animais, como peixes-boi, saguis, tucanos, papagaios, araras e tartarugas. Também fazia inúmeras medições geodésicas, examinava larguras, velocidades, profundidades e declives dos rios. Chegou mesmo a esboçar um mapa de toda a região, com um altíssimo grau de exatidão. Ao mesmo tempo, trocava informações importantes com os jesuítas instalados na área e combatia a visão, tão cara às teses de Rousseau (1712-1778), favorável à pureza dos índios: “os selvagens que gozam de liberdade são no mínimo tão limitados, para não dizer tão estúpidos, quanto os outros; não podemos ver sem humilhação o quanto o homem abandonado à simples natureza, privado de educação e de sociedade, pouco difere do animal”.
Todo esse trabalho foi um incentivo fundamental para o naturalista alemão Alexander Humboldt. Além das indicações para os projetos de viagem e pesquisa em solo americano, os registros de La Condamine lhe deram as primeiras referências e citações para algumas de suas hipóteses geográficas. A principal delas envolvia a discussão sobre a então inverossímil ligação entre as bacias do Amazonas e do Orenoco por meio do Rio Negro e do Rio Casiquiare. Na época, os cartógrafos negavam de forma veemente essa possibilidade, pois seria o único caso no mundo de uma confluência (ou canal) natural entre dois sistemas fluviais. A polêmica não era apenas científica; trazia também um dado estratégico para os dois impérios ibéricos. Humboldt faria sua viagem científica 30 anos depois e reafirmou a seriedade das primeiras observações do cientista francês.
Quando La Condamine chegou à região, ousou dizer que “o grande número e a diversidade das árvores e plantas que encontramos às margens do Rio Amazonas, na extensão de seu curso desde a Cordilheira dos Andes até o mar, e às margens dos diversos rios que nele se perdem, dariam vários anos de exercício ao mais laborioso botânico”. Só que, após a publicação e a divulgação de seu texto, os olhos da razão ilustrada europeia ficaram temporariamente desfocados dessa natureza inspiradora. O acirramento da política mercantilista portuguesa, principalmente em função do ouro das minas, isolava o Brasil do contato estrangeiro. Os portugueses tinham medo de que outros povos, pesquisando a natureza brasileira, desejassem conquistá-la e ocupá-la.
Já perto do final do século XVIII, a expedição de Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815), produto de um iluminismo português tardio – França e Inglaterra eram iluministas havia décadas –, reformista e regenerador, desvendou alguns detalhes desse universo escondido. Mas os trópicos só voltaram a atrair a atenção dos europeus bem mais tarde. Com as pesquisas de Langsdorff (1774- 1852), Spix (1781-1826), Martius (1794-1868) e mesmo Charles Darwin (1809-1882), apareceram outros olhares ilustrados em torno do novo continente. E até hoje a América continua guardando seus mistérios.
Cid Prado Valle é professor da Fundação de Apoio à Escola Técnica do Estado do Rio de Janeiro (Faetec) e autor do livro Risonhos lindos campos – Natureza tropical e identidade brasileira (Senai/Tecnogaia, 2005).
Saiba Mais - Bibliografia:
GERBI, Antonello. O Novo Mundo: história de uma polêmica (1750-1900). São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do paraíso. São Paulo: Brasiliense, 1992.
PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru: Edusc, 1999.
Luzes sobre a Amazônia
Cid Prado Valle