- Como agarrar um homem. Como ser uma companhia agradável. Como manter uma união conjugal. Como ser mulher. Nas seções femininas da revista A Cigarra não faltavam fórmulas prontas para que as leitoras alcançassem seu suposto ideal de vida: o casamento. Na mesma publicação, porém, uma história em quadrinhos subvertia esse discurso. Em “O marido de madame”, os bastidores de um matrimônio revelavam quem realmente mandava na casa, fazendo graça dos papéis tradicionalmente associados ao marido e, principalmente, à esposa.Idealizada pela jornalista Helena Ferraz de Abreu, essa HQ fez sucesso entre as moças e senhoras que acompanhavam A Cigarra entre 1948 e 1954. Sob o pseudônimo Álvaro Armando (nomes do primogênito e do caçula, respectivamente), Helena escrevia em versinhos cenas cotidianas envolvendo o jovem casal Lolita e Gonçalo, e depois enviava cada episódio ao artista gráfico e figurinista Alceu de Paula Penna (1915-1980), responsável pelas ilustrações.Na maioria das vezes, Lolita revelava-se uma mulher inteligente e perspicaz, capaz de arquitetar uma série de planos a fim de obter do marido, o provedor da casa, aquilo que desejava: joias, viagens, eletrodomésticos. Quando os recursos financeiros não eram suficientes para livrá-la de alguma situação laboriosa, mandava que Gonçalo – grande culpado pela falta de dinheiro – realizasse o serviço. De vez em quando, a “madame” deixava transparecer os infortúnios da vida conjugal. Chorando ilusões, queixava-se, por exemplo, de ter que pregar os botões das camisas do marido.O ilustrador Alceu Penna idealizou as personagens investindo em traços cômicos. Gonçalo, longe de parecer qualquer astro de Hollywood da época, tem pernas curtas, barriga saliente, pescoço largo e rosto engraçado. Usa um par de óculos com lentes redondas e um traje social com gravatinha borboleta. Lolita, como mulher, não poderia descuidar da beleza – fator de extrema importância para a conquista do par ideal e para a manutenção da chama do amor conjugal. Seguindo os padrões ditados no período, a madame – “uma gilda de mulher”, segundo o autor “Álvaro Armando” (referência ao filme Gilda, de 1946, com Rita Hayworth) – era representada magra, com cintura marcada, rosto fino e delicado, cabelos curtos e escuros. Sempre maquiada e vestida com primor, a personagem feminina atrai os olhares dos leitores e, consequentemente, diminui a presença do marido.Considerada uma revista de variedades, A Cigarra foi fundada em 1913 pelo jornalista Gelásio Pimenta. A princípio quinzenal e restrita a São Paulo e a algumas cidades do interior do estado, no início dos anos 1930 foi comprada pelo empresário Assis Chateaubriand, que a transformou em um grande magazine de circulação nacional e periodicidade mensal. Sob a direção de Menotti Del Picchia e com colaborações de intelectuais como Olavo Bilac e Vicente de Carvalho, divulgava informações diversas, mas sempre privilegiou assuntos de interesse das mulheres. Em 1948, Helena Ferraz de Abreu criou “A Cigarra Feminina”, um ambicioso suplemento com cerca de 30 páginas. As histórias de “O marido de madame” estrearam em outubro daquele ano e foram publicadas até 1954, quando a jornalista deixou a direção do suplemento.Em meio a tantas páginas repletas de normativas associadas aos “deveres femininos”, a HQ brincava com novas possibilidades, evidenciando uma inversão dos papéis de gênero: naquele lar de classe média carioca, era Lolita quem dava a última palavra. Ainda que o humor dos versos de “Álvaro Armando” atenuasse o caráter progressista de suas mensagens, com Lolita as leitoras tinham a oportunidade de desaprender os sólidos encargos atribuídos à figura da esposa ideal. Por meio de suas inteligentes artimanhas, podem ter intuído que o matrimônio não as condenava à submissão, e que havia formas de resistir às hierarquias patriarcais.Jaqueline Moraes de Almeida é historiadora e autora de “Esboços sobre a trajetória de Alceu Penna nos Diários Associados: moda, corpo e identidades”. 10º Colóquio de Moda, v. 10 (Anais Colóquio de Moda de Caxias-RS, 2014).Saiba maisBONADIO, Maria Claudia & GUIMARÃES, Thaís Fernandes. “Alceu Penna e as representações gráficas do casamento e da juventude na revista A Cigarra (1947-1955)”. Diálogos (Maringá Online), vol. 17, n. 02, p. 649-683, mai.-ago. 2013.MARZULLO. Elza. Detalhes de elegância e beleza. Rio de Janeiro: Editora O Cruzeiro, 1948.PEDRO, Joana M. & PINSKY, Carla B. (orgs.). Nova História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012.PENNA, Gabriela Ordones. Vamos, Garotas! Alceu Penna: moda, corpo e emancipação feminina (1938-1957). São Paulo: Annablume/ Fapesp, 2010.
Madame vira a mesa
Jaqueline Moraes de Almeida