Se conselho fosse bom, seria vendido. É o que comprova a Carta de Guia dos Casados: para que pelo caminho da prudência se acerte com a casa do Descanso, a um amigo, escrita em 1651 por D. Francisco Manuel. Erudito e solteiro por toda a vida, ele foi um dos nobres portugueses que se destacaram no cenário político da dominação espanhola em Portugal. Suas recomendações a um amigo recém-casado foram consideradas tão boas que logo saíram em livro. Liberada pelo Santo Ofício, na época responsável pela censura às publicações, a obra tornou-se um verdadeiro best-seller, chegando à 7ª edição em 1765. Um desses exemplares, num providencial formato de bolso, pode ser encontrado na Divisão de Obras Raras da Biblioteca Nacional.
Já nas primeiras páginas deste livro-carta, dedicado a D. Francisco de Mello, alcaide-mor de Lamego, em Portugal, está uma curiosa defesa do novo estado civil de seu destinatário: o casamento é encarado como um repouso para o homem. Quanto mais tempo ele passasse “solto”, mais enfrentaria as dificuldades da vida. Assim, sabendo conduzir o matrimônio com cuidado, conseguiria trazer leveza para seu dia a dia. Bastava lembrar os tempos de solteiro e colocar na balança as inquietações passadas: “os perigos, os desgostos, a desordem dos afetos, aquele temer tudo, a vingança que arrisca, os ciúmes que abrasam, os amores que consomem, a saúde diminuída, a vida arriscada (...)”. Só por afastar todos esses males, o enlace já merecia ser visto como doce e santo.
Mas a felicidade do casal dependia de boas doses de equilíbrio. D. Francisco Manuel afirma que “a desigualdade no sangue, nas idades, na fazenda causa contradição; a contradição, discórdia (...)”. E completa: “para a satisfação dos pais, convém a proporção do sangue; para o proveito dos filhos, a da fazenda; para o gosto dos casados, a das idades”. Se algum desses descompassos persistisse, a vantagem deveria ser sempre em favor do marido, “em tudo à mulher superior”. Uma visão compartilhada por quase todos naquela época.
E onde ficava o amor? Para o conselheiro, a falta ou o excesso desse sentimento acabavam transformando os casados em malcasados. Por isso, o noivo deveria amar a mulher sem “perder por ela a dignidade de homem, a troco de não contradizer sua vontade, quando é justo que a contradiga.” E a esposa também não tinha que se portar como sua escrava, apesar de lhe devotar respeito e, muitas vezes, temê-lo: “que o marido tenha as vezes de Sol em sua casa e a mulher as de Lua. A ela, caiba iluminar com a luz que ele lhe der; tendo também alguma claridade. Ele sustente o poder; ela, a estimação. Ela tema a ele, e ele faça que todos temam a ela”.
Ao longo das quase 300 páginas da Carta, os conselhos para um casamento feliz envolvem os mais variados aspectos da vida cotidiana do casal. Na extensa lista, chamam atenção as formas de classificação conferidas às mulheres. Há aquelas “de rija condição” ou “brabas”, que os homens devem tratar com cuidado; outras tantas descritas como “formosas”, indiscretas ou “feias”; as doentes; “impertinentes com os criados”; “ciumentas sem razão” e “gastadoras”. Especialmente no caso das feias, o autor considera esta uma “pena ordinária”, mas afirma ser melhor “viver seguro no coração que contente nos olhos”. Mesmo com todo esse esforço descritivo, D. Francisco Manuel alerta que “seu ânimo não é dar conselhos a quem escolhe mulher, e sim avisos para se viver com aquela que já se tenha escolhido”.
Na despedida, aproveita para se desculpar com as esposas: sua “doutrina” poderia lhes parecer excessivamente rigorosa, mas seu “ânimo não foi esse, senão encaminhar tudo à sua estima, regalo e serviço”. E aquelas que insistissem numa “outra Carta para as casadas”, deveriam se contentar com o que já deixara dito aos seus maridos. Para arrematar, aconselhava ordem em tudo, com esposa honrada e marido cristão. Só assim os casais garantiriam “boa vida, e boa morte”. (Rafaella Bettamio/Fundação Biblioteca Nacional)
Manual do casamento
Rafaella Bettamio