Manuscritos na cabeça

Bernardo Camara

  • Waldir passou cinco décadas debruçado sobre os manuscritos da BN:"Conheço aquele acervo de olhos fechados".Quando beirava os 50 anos de casado, Waldir da Cunha também chegava a cinco décadas de relacionamento extraconjugal. A esposa chamava-se Maria de Lurdes. A amante, Biblioteca Nacional. “Eu chamava a BN de minha namorada”, conta Waldir, que de tanto se enfurnar nas salas de pesquisa, despertava ciúmes na mulher. Após anos a fio trabalhando na Divisão de Manuscritos – de onde só foi tirado pela aposentadoria compulsória, em 1995 –, ele hoje é considerado um arquivo vivo do setor.

    “Às vezes a gente precisa localizar algo que ninguém acha. A gente pega o telefone e fala ‘Waldir, dá uma ajudinha aqui’. Ele sabe de cabeça onde encontrar”, diz Vera Faillace, atual coordenadora da Divisão, que já esteve sob o comando do senhor de 85 anos. “Ele é referência aqui”.

    Hoje, Waldir vai pouco à BN. Mas basta alguém sentar alguns minutos ao seu lado para que ele desande a falar dela. “Conheço aquele acervo de olhos fechados”, garante. Quem duvidar, peça ao ex-servidor para dar uma olhada no livro Bibliotheca Nacional – Um jardim de delícias. Paga do seu próprio bolso, a obra que acabou de sair da gráfica é um mergulho nos antigos escritos guardados ali dentro.

    “Deixei registrado tudo o que vi, ouvi e li durante esse tempo em que estive lá”, explica. E não é coisa pouca. A lista vai de um padre beijoqueiro que foi pego pela Inquisição a um Carlos Drummond voltado para o erotismo. “Quem abre a gaveta do Drummond pensa que só vai sair poesia dali. Tem um volume só com cenas eróticas japonesas”, revela.  

    Em tom de diário, o livro vai percorrendo manuscritos que falam de figuras emblemáticas na História brasileira. Com um olhar curioso, mostra ângulos nada habituais desses personagens. Enquanto Tiradentes solta os cachorros – literalmente – numa formosa mineira após a desilusão amorosa, o imperador Pedro II guarda cartas e mais cartas de admiradoras.

    Mas a publicação não tem somente casos pitorescos. Nas mais de 300 páginas, também há espaço para a história da própria BN, desde seus tempos de Real Biblioteca. “Eu era maluco por aquilo. Quando me debruçava sobre um documento, eu vivia aquela época. Se alguém vinha falar comigo, eu tomava até um susto”, recorda Waldir, que perdeu a conta de quantas novas coleções do acervo pôs em ordem.

    Por tanta dedicação, ele acabou levando mais que lembranças da instituição. Em sua casa, guarda cheio de cuidados a medalha Amigos da Biblioteca, concedida nos anos 1990 “pelos bons serviços prestados”. “Ele passava o dia inteiro dentro da seção. Muitas vezes, não saía nem para o almoço”, relembra Lizete Maria dos Santos, que começou como estagiária na Divisão de Manuscritos nos anos 1970. “Quando cheguei, ele já era veterano”.

    Se atualmente Waldir não está mais na BN, os mil exemplares impressos de Um jardim de delícias espalham-se em caixotes pelo seu quarto. A produção caseira – ele mesmo deu as coordenadas do projeto gráfico e botou as filhas para fazer a revisão – não tem preço de mercado. Ele pretende difundir suas anotações pessoalmente. “Agora, o que eu quero é sair viajando por aí”, diz. “E distribuindo o livro pelas bibliotecas por onde passar”.