“Morrer se necessário; matar, nunca”. Era neste princípio que se baseava a política indigenista adotada por Cândido Mariano da Silva Rondon ao longo de toda a sua trajetória. Natural de Mimoso, Mato Grosso, ele próprio tinha sangue índio nas veias, bororo, por linhagem materna. Transformou-se em um dos principais mitos republicanos brasileiros, devido, em grande parte, à imagem de rigidez moral que transmitia, sustentada por sua fé inabalável na Religião da Humanidade. Doutrina e crença que abraçou ao ingressar, em 1898, na Igreja Positivista do Brasil, à qual permaneceu fiel até sua morte, em 1958.
As ações e os princípios de Rondon deitam raízes, de modo evidente, na doutrina positivista e nas orientações do Apostolado brasileiro, elaboradas principalmente por Miguel Lemos (1854-1917) e Raimundo Teixeira Mendes (1855-1927), discípulos brasileiros de Auguste Comte e os mais importantes porta-vozes do positivismo religioso no Brasil.
Pode-se dizer que dois caminhos diferentes se cruzaram na formação de Rondon: o positivismo e a vida militar. Depois de terminar o curso primário em Cuiabá, ingressou no Liceu Cuiabano em 1879. Formou-se aos 16 anos, e logo em seguida foi nomeado professor primário, atividade que abandonaria em 1881 para sentar praça como voluntário no 3º Regimento de Artilharia a Cavalo, ainda em Cuiabá. Com o sonho de cursar a Escola Militar do Rio de Janeiro, mudou-se para a então capital do Império, classificado no 2º Regimento de Artilharia de Campanha. A carreira militar entrava em linha: em março de 1883, a matrícula no curso preparatório da Escola Militar, encerrado com distinção um ano mais tarde; curso de cavalaria e infantaria, depois, artilharia. Em 1889, ingressa na então Escola Superior de Guerra, onde ensinava Benjamim Constant, líder republicano e positivista, de quem se tornou aluno e seguidor. O positivismo então se revela para Rondon.
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As doutrinas positivistas se estabeleceram no país ainda nas últimas décadas do século XIX, período então fortemente marcado pela questão racial. Naquele momento, em uma espécie de compromisso entre o preconceito racial e a verificação patente da pluralidade étnica da população, muitos acreditavam que a solução para esta mistura de brancos com as raças ditas inferiores estaria na diluição do sangue índio e negro na corrente considerada mais pura do sangue europeu. Somente mais tarde a mestiçagem passaria a ser valorizada por algumas correntes intelectuais, que consideravam a “mistura de raças” como a marca mais profunda de uma suposta brasilidade, como é o caso do famoso livro de Gilberto Freyre, Casa grande & senzala, de 1933.
Ao contrário de boa parte dos intelectuais e cientistas da época, os positivistas defendiam a posição de Comte, que via as raças como complementares: os negros seriam mais afetivos, os brancos, mais inteligentes e os amarelos, mais ativos. No futuro, a Humanidade iria se tornar uma raça única, herdando as qualidades de todas. Este tipo de argumento serviu também de base no que concerne à incorporação dos indígenas à sociedade, importando aqui frisar que os positivistas ortodoxos pregavam o respeito pelas culturas de origem africana e americana, mesmo que sua transformação fosse inevitável. Segundo as idéias de Comte, as transformações deveriam ser espontâneas e nunca impostas. Com o tempo, acreditavam, os “africanos” e indígenas acabariam naturalmente por adotar os hábitos e costumes considerados mais adiantados. Os positivistas brasileiros acreditavam ainda que tanto os escravos como os índios poderiam pular etapas históricas intermediárias (a fase religiosa) e passar direto do “fetichismo primitivo” para o estágio mais desenvolvido da humanidade, o estado positivo.
Essas reflexões foram usadas para direcionar as propostas dos positivistas com relação à questão indígena. Miguel Lemos e Teixeira Mendes tentaram combater algumas opiniões que circulavam na época, baseadas na premissa da inferioridade dos índios em relação aos brancos. Alguns cientistas chegaram a afirmar que a raça vermelha estava fadada à extinção. Os membros do Apostolado procuraram difundir a idéia de que os indígenas deveriam ser salvos da destruição e atraídos para o convívio dos ditos civilizados sem utilização da força, a exemplo do que consideravam o tratamento “humanitário” dos jesuítas. Nesta linhagem incluíram igualmente José Bonifácio e os poetas Gonçalves Dias e Castro Alves, que haviam manifestado o desejo de salvar os silvícolas. O positivismo, segundo eles, teria sistematizado cientificamente esse desejo já presente na sociedade brasileira.
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Desde as últimas décadas do século XIX, os discípulos brasileiros de Comte defendiam que a incorporação dos índios ao conjunto da sociedade deveria respeitar sua cultura e sua religião, a fim de permitir sua passagem para o estado positivo sem que fossem “contaminados” por crenças do catolicismo. Esta diretriz, se implementada, significaria o fim das missões religiosas, tradicionalmente dedicadas à catequese dos silvícolas.
As ações de Rondon eram a aplicação prática desse princípio. Ao longo do século XX, respaldado pelo positivismo religioso, conseguiu em vários momentos dirigir as ações das instituições públicas encarregadas da política indigenista. A influência positivista, além de sua tradicional presença no Exército, se fez sentir também em algumas correntes da esquerda nacionalista, como é o caso de Roquette-Pinto e do famoso antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro, que se considerava discípulo do militar.
Durante as inúmeras expedições que comandou, além da proibição de qualquer tipo de agressão, Rondon implantou seu método para tentar estabelecer relações pacíficas com os indígenas. Este consistia em doar às tribos instrumentos agrícolas e de artesanato, ensinando-as a plantar e a criar gado. Acreditava que os índios não deveriam ser forçados a aprender. A melhor forma de ensino seria o exemplo. Rondon e seus subordinados poderiam, entre outros serviços, arar e semear um terreno e deixar as ferramentas necessárias para a continuação do trabalho, ou mostrar-lhes como construir casas simples, para que percebessem sua utilidade.
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Além de uma vigorosa defesa do direito dos indígenas à vida e às suas terras, Rondon procurava transformá-los em trabalhadores brasileiros, capazes de defender as fronteiras do país e respeitar os símbolos nacionais. Os paresí e os bororo trabalharam na instalação de postes telegráficos no Mato Grosso e ajudaram na demarcação de fronteiras no Oeste do país. Para Rondon, este exemplo servia como prova da possibilidade de “civilizar” os “selvagens”, ou seja, como sinal de sua perfectibilidade. Os resultados técnicos dessa empresa foram praticamente nulos no que diz respeito ao telégrafo, rapidamente substituído pelo rádio. No livro Tristes trópicos, Lévi-Strauss descreveu a decadência das linhas telegráficas. No entanto, o próprio etnólogo francês e sua equipe utilizaram os caminhos abertos pelos militares e índios a serviço de Rondon.
Rondon, esse militar positivista, considerava os índios os verdadeiros alicerces fundadores da nação brasileira, em consonância com o indigenismo romântico do século anterior. Suas expedições produziram grande quantidade de material de propaganda, inclusive centenas de fotografias e filmes, poderosos registros iconográficos. Neles podemos vislumbrar a crença de Rondon e de sua equipe no advento de uma civilização laica. Os temas abordados mostram aspectos da ordem militarizada presente nas missões, a busca de integração dos indígenas à nação brasileira, além de uma série de imagens romantizadas do cotidiano das tribos contatadas. Os acampamentos seguiam uma rotina rígida e rituais obrigatórios, como o hasteamento da bandeira, procedimento, aliás, realizado até hoje pelos positivistas em seu templo, localizado na Rua Benjamin Constant, na cidade do Rio de Janeiro.
Misturados a soldados de uniforme, índios nus aparecem nas imagens cumprindo esses rituais. Os primeiros habitantes do Brasil são retratados travando contato com objetos do mundo civilizado, como câmeras fotográficas, relógios, instrumentos de trabalho. Vêem-se também salas de aula, montadas em casas construídas pelos próprios índios a partir das técnicas recém-adquiridas. Acima de tudo destaca-se a beleza de algumas imagens, que parecem querer mostrar toda a grandeza dos povos indígenas. O bom selvagem brasileiro, caracterizado como inocente e nobre, constituía, talvez, a imagem de Rondon invertida no espelho: fetichismo e positivismo, os dois extremos da história da humanidade se tocam.
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Assim, é impossível traçar a história da política indigenista no início do século XX sem perceber o papel de destaque ocupado pelos positivistas. Da crítica à escravidão à defesa paternalista dos indígenas, as diretrizes defendidas pelos discípulos de Comte, entre os quais figura Rondon, tinham como alicerce a crença na marcha inexorável da humanidade em direção ao estado positivo, mesmo que o caminho fosse trilhado de forma lenta e sem rupturas. Além disso, sua forma de atuação na sociedade pressupunha uma propagação moral, educativa. Seu desejo de transformação social pressupunha ainda a incorporação do passado pelo presente. Estes elementos ajudam a compreender a aproximação dos positivistas da literatura romântica, compartilhando com ela a elevação dos índios, a fonte original do sentimento nacional. Em uma conferência sobre José Bonifácio proferida no Instituto Histórico, Rondon se apropriou da linhagem de heróis positivistas citando as seguintes palavras de Gonçalves Dias em favor dos índios: “Eles foram o instrumento de tudo o que existe de grande e de útil, eles são o princípio de todas as coisas; eles nos legaram as fundações de nosso caráter nacional”.
Mesmo após o fim das atividades da notória Comissão que levou seu nome, Rondon continuou intimamente ligado às questões indígenas, principalmente durante as missões de inspeção de fronteiras, que chefiou nos anos de 1920 a 1930. Em 1939, o Serviço de Proteção aos Índios foi transformado em Conselho Nacional de Proteção ao Índio, tendo o general Rondon, então com 74 anos, como seu primeiro presidente. Em 1952, aos 87 anos, levou ao presidente Getúlio Vargas o projeto de lei propondo a criação do Parque Nacional do Xingu, destinado à preservação da flora e da fauna locais, com usufruto da terra para os índios que nela viviam. No ano seguinte, foi um dos principais artífices da criação do Museu do Índio. Já com 91 anos e próximo da morte, em 1956 ele apelou ao presidente Juscelino Kubitschek na tentativa de salvar o Conselho Nacional de Proteção ao Índio da desmoralização que vinha sofrendo devido a misturas de questões político-partidárias na gestão do órgão.
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Ao longo da vida, por seu trabalho de sertanista e de proteção ao índio, Rondon recebeu inúmeras homenagens no Brasil e no exterior. Em 1911, uma das mais importantes: foi aplaudido no Congresso Universal das Raças, reunido em Londres, como exemplo a ser seguido “para honra da civilização”.
Lorelai Kury é pesquisadora em História das Ciências da Casa de Oswaldo Cruz e professora de Teoria e Metodologia da História da Uerj. Publicou diversos trabalhos sobre viagens e expedições científicas.
Marchar com fé
Lorelai Kury