- Três navios franceses aproximavam-se da capitania de Itamaracá, sem que suas tripulações imaginassem a recepção que os esperava em terra. Assim que desembarcaram, o capitão-mor Cristóvão Jacques aprisionou as centenas de homens que estavam a bordo e ordenou sua execução – que se deu com extrema violência, até mesmo com porretes. Era uma punição e um aviso aos franceses, que haviam atacado a feitoria local. Seis anos depois, veio a vingança: a área foi destruída pela nau francesa La Pellerine, comandada pelo capitão Jean Dupret. A investida rendeu um saque estimado em aproximadamente 300 toneladas de pau-brasil, além de peles de animais.O ano era 1526 e o mar andava agitado. Durante todo o período colonial (1500-1808) – e um pouco além dele – vários confrontos tomaram o litoral pernambucano, que começava a gozar de um comércio intenso e, por isso mesmo, cobiçado. Eram comuns os ataques aos portos e, principalmente, aos navios. Tudo isso foi registrado em diversos documentos. Nas últimas décadas, as pesquisas arqueológicas têm trazido à tona novos dados que fundamentam e complementam informações sobre a história da região.Em fins do século XVI, ao sul de Itamaracá, florescia uma movimentação intensa de carga na capitania de Pernambuco, sobretudo cana-de-açúcar e madeira. A presença de invasores era frequente, e os moradores locais tentavam dificultar sua vida: quando caía a noite e a maré subia, levavam algumas jangadas para perto dos navios ancorados no porto e ateavam fogo, numa tentativa de incendiar as embarcações dos inimigos. Via de regra, morria gente dos dois lados. Anos mais tarde, em 1630, foi a vez de os holandeses invadirem o porto do Recife. Após tomarem o local, eles passaram 24 anos tentando ampliar seu domínio e manter o que já haviam conquistado.Por trás de todas as investidas, o motivo era o de sempre: a luta pelo controle comercial do Atlântico – ou parte dele – pelas potências europeias. Inglaterra, França, Espanha, Holanda e Portugal disputavam cada milha para manter suas possessões coloniais e superioridade comercial. E o Atlântico era uma avenida a ser conquistada e mantida.
Pesquisas arqueológicas realizadas entre 1999 e 2003 pela equipe de arqueologia da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) resgataram uma coleção de vestígios que confirmam o comércio intenso na zona portuária do Bairro do Recife – na área do antigo cais do Lamarão, onde se descarregavam materiais em um ancoradouro próximo ao antigo prédio da alfândega. Uma série de bilhas – recipientes usados no transporte de produtos – foi encontrada em formato nunca antes visto no Brasil. Nessa região existia um armazém na área lateral do prédio da Alfândega entre fins do século XVIII e início do XIX. Lá foram descobertas aproximadamente 90 bilhas de cerâmicas íntegras e 60 fragmentadas. Três delas ainda se encontravam lacradas e com restos de caroços de azeitonas de origem espanhola. Peças de formato inusitado e de grossa espessura, as bilhas eram confeccionadas para facilitar o transporte de líquidos, que em movimento desenvolviam uma trajetória circular, dando maior estabilidade ao objeto de cerâmica durante o trajeto marítimo. Em terra, os recipientes podiam ser enfiados em peças de couro e atados nas selas das bestas de carga, sem risco de quebrar.
Há registros de bilhas descobertas nesse formato nas ilhas do Caribe e na cidade de Buenos Aires. Nos países de língua espanhola, elas eram chamadas de botijas, e serviam inclusive para transportar leite. Tinham diferentes formas, e as de maiores dimensões eram conhecidas como botijão. No Brasil, também eram chamadas de moringa ou quartinha – designações que se popularizaram para descrever potes de barro com fundo reto que armazenavam água, sem a função de transportar produtos.A descoberta desses objetos e de outros recipientes possibilitou também a identificação de produtos industrializados europeus que chegavam ao porto de Recife. Nessa lista havia azeitonas espanholas, cervejas inglesas e sardinhas francesas. O exemplar de um lacre de peixe enlatado foi encontrado nas escavações.Essas áreas portuárias foram fundamentais no desenvolvimento das cidades coloniais. Era um jogo de mão dupla: o crescimento demográfico da colônia impulsionava e acelerava o desenvolvimento das atividades comerciais. A associação de vilas, portos e fortes representam a maneira como os portugueses ocupavam o território. A maior parte das cidades estava situada próxima ao mar ou às margens dos rios, e sempre se procurava um bom porto natural e abrigado. Protegido pelos arrecifes, o porto de Recife foi aos poucos ganhando importância.A área conhecida como Recife Antigo é fruto de um processo secular de ação da natureza e humana. Sua superfície foi modificada por sucessivos aterros que ampliaram a área de ocupação, permitindo o aumento das atividades comerciais. No início do período colonial, existia apenas um pequeno trecho de terra com aproximadamente 80 metros de largura, que unia o povoado do Recife a Olinda. Após os aterros, o terreno evoluiu até as feições atuais. Com a importância que o local adquiriu, logo as terras ficaram insuficientes para atender aos comerciantes que chegavam aos montes.Essas mudanças profundas foram devidamente registradas em iconografias ao longo dos séculos. A área cresceu horizontal e verticalmente, surgindo novas quadras, novas ruas e construções de distintas concepções arquitetônicas, compondo um cenário repleto de diferentes personagens.À medida que o porto do Recife ia crescendo, as relações também se tornavam mais complexas, mais intensas, e a necessidade constante de defesa e controle do entra e sai de mercadorias era cada vez maior. Afinal, o local recebia não apenas produtos para a comercialização entre os locais: sobretudo, era através dele que eram escoadas as principais riquezas e produções da capitania, como a cana-de-açúcar e as cargas de madeira, que se destinavam, entre outras coisas, à construção de navios de guerra.Por conta de sua importância, o porto do Recife passou a ser defendido por algumas fortificações. Outra medida tomada foi a utilização do Regimento dos Sinais, que consistia em bandeiras com retângulos e triângulos nas cores verde, vermelho e branco, usadas individualmente ou em combinações emitindo mensagens que podiam ser vistas de um ponto a outro das fortificações, em todo o porto e ao longo dos distritos à beira-mar. Por meio dos códigos, os vigias deveriam fazer a leitura rápida da situação para avisar os defensores.Apesar dessas medidas de precaução, a defesa do território nem sempre era eficiente. Os anos passavam e os conflitos envolvendo disputas comerciais sempre voltavam. O cotidiano dos moradores era tenso: a qualquer momento poderia ocorrer um ataque, tanto nos portos como em áreas menos povoadas.Esse contexto de confrontos relacionados aos aspectos comerciais continua sendo desvendado por historiadores e arqueólogos que trabalham na região. Materiais achados em escavações, como louças, cachimbos, projéteis de mosquete, balas de canhão, botões e bilhas são importantes fontes de informação sobre o período.E as descobertas não têm data para acabar: além das pesquisas já realizadas em terra, a prática da arqueologia submarina tem se espalhado pela área. A localização e o estudo das diversas embarcações naufragadas na região irão trazer novas informações, não só dos ataques de piratas ou batalhas entre navios, mas também do cotidiano das embarcações e do dia a dia do homem comum. A julgar pelo agitado cotidiano do litoral pernambucano ao longo do período colonial, ainda há muita história para emergir por ali.Ana Nascimento é professora e coordenadora do Núcleo de Ensino e Pesquisa Arqueológica da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Lenivaldo Cavalcante é professor da Faculdade Joaquim Nabuco, da Secretaria de Educação de Pernambuco e colaborador do Laboratório de Arqueologia da UFRPE.Saiba maisRAMBELLI, Gilson. Arqueologia até debaixo d'água. São Paulo: Maranta, 2004.FUNARI, Pedro Paulo. Arqueologia. São Paulo: Contexto, 2006.FilmeMestre dos Mares – O lado mais distante do mundo (Peter Weir, 2003).
Maré cheia
Ana Nascimento e Lenivaldo Cavalcante