- Historiador brasileiro deve falar exclusivamente do Brasil, certo? Errado. Maria Berbara, professora do Instituto de Artes da Uerj, é a prova de que é possível, no Brasil, dedicar-se a grandes temas da história geral de igual para igual com pesquisadores estrangeiros. Na verdade, “o grande tema é algo inaceitável”, diz a professora. “Qualquer pessoa pode estudar qualquer coisa”. E ela faz muito mais do que só falar.
Formada em História pela Unicamp, Berbara dedica-se ao Renascimento desde seu mestrado na universidade paulista. No doutorado, ela foi para Hamburgo, onde o pensamento sobre arte e Renascimento tem uma enorme tradição. O resultado foi uma formação eclética e sólida, que hoje dá frutos na expansão do ensino da história da arte no Brasil e na formação de novos profissionais na área. Seus projetos, em geral, envolvem seminários e publicações que unem o trabalho coletivo de professores e estudantes da área. Em 2010, ela organizou “Renascimento Italiano”, com ensaios de professores no Brasil e traduções, em sua maioria, inéditas em português.
Em sua casa no Rio de Janeiro, onde recebeu a equipe da Revista de História, Berbara contou um pouco sobre a dificuldade de se trabalhar com história da arte no país e a importância do seu ensino nas escolas. Lamentando o fato de a universidade no Brasil ser demasiadamente provinciana, ela lembrou que o desenvolvimento da disciplina depende também da abertura para instituições e profissionais de outros lugares do mundo.Revista de História – Seu livro procura lidar com um tema clássico, como Renascimento, com pesquisadores brasileiros. Por quê?Maria Berbara – A ideia era justamente criar um texto que fosse referência, e que fosse escrito por brasileiros ou por professores atuantes no Brasil. Nosso objetivo em parte era: o que um historiador da arte, brasileiro, tem a dizer sobre o Renascimento? Estamos sempre lendo os grandes, que são referência, mas o que um brasileiro, um latino-americano, um africano ou um chinês tem a dizer sobre o Renascimento?RH – Nesse seu projeto, houve uma preocupação com uma escrita mais leve?MB – Primeiro, é preciso dizer, o projeto era meu, mas o livro foi muito colaborativo. Houve um envolvimento grande dos estudantes da pós-graduação. Os autores são pessoas que eu conheço pessoalmente, com os quais eu tenho uma afinidade acadêmica e pessoal muito forte e, então, eu sabia que eles tinham um desejo real de comunicação, porque não basta você entender do assunto. O que a gente disse aos autores é que queríamos um texto compreensível para alguém culto, mas que ao mesmo tempo fosse um ensaio.RH – A saída de trabalhar com ensaios e traduções pareceu muito didática.MB – A gente quis fugir desses clichês e tratar o público de uma forma inteligente. Não queríamos paternalizar o leitor nem tratar do tema de maneira hiperespecializada. Não queríamos fazer um manual. Não critico, existem manuais muito bons, eu não tenho nada contra, mas eu queria fazer algo mais caleidoscópico. Você apresenta um aspecto do Renascimento através do objeto, através de um artista, através de um problema, e isto talvez leve ao clichê, talvez não. Acho que esta é uma forma contemporânea de se escrever, você não sai do seu objeto. Porque a gente já tem tanta informação hoje em dia na internet que você não precisa mais fazer um texto ou começar um texto sobre Michelangelo dizendo que ele nasceu em 1475 e morreu em 1564, isto não é mais necessário. Você pode atacar seu problema sem precisar contar a história do mundo cada vez que vai escrever sobre ele – eu digo isso aos meus alunos – senão fica um texto longo e chato. O importante é logo no início dizer a que veio e fazê-lo a partir da análise do objeto.RH – Como o quê?MB – Pode ser um conceito, uma carta ou uma análise iconográfica, mas não precisa sair dele. Eu acho que isto é uma coisa que caracteriza a boa escrita contemporânea no âmbito das humanas de modo geral. É o que eu almejo fazer. Existe hoje uma enorme proliferação de material, não tem mais sentido fazer um grande texto genérico. Você pode pegar uma questão e a partir dela caminhar para determinadas conclusões ou desconstruir determinadas conclusões. A ideia do Renascimento como período alegre, solar, por exemplo, é uma construção. Dependendo do ângulo que você olha, é tudo, menos isso. São imagens da morte, da passagem do tempo, muita tristeza, muito sentimento de perda. O maior sonho do passado, do presente e do futuro vira pó. A peste negra foi tudo ao mesmo tempo...RH – Então, foi um período muito mais complexo.
MB – Exatamente, há uma ideia, há uma percepção de que eles conseguiram fazer coisas maravilhosas no âmbito das artes e da ciência, mas há também uma percepção gigantesca da fragilidade humana, a crise da fé, as guerras religiosas, o protestantismo, as navegações. Coisas que as pessoas não colocam juntas. Mas as navegações, por exemplo, implicam uma necessidade de rever o mundo. O mundo desde sempre tinha sido divido em três partes, três continentes – a Europa, a África e a Ásia – porque Noé teve três filhos e cada um foi para um desses continentes. Então, de repente, você encontra um quarto e isto não é só um alargamento geográfico, é um alargamento cultural e uma necessidade de revisão religiosa. E gente, gente que você não sabe da onde veio, escapou ao dilúvio. São humanos, não são humanos? E essas pessoas estão chegando aos portos de Veneza e de Lisboa. E os produtos, as especiarias, as frutas também estão chegando. Realmente foi um momento de enorme globalização.RH – Por isso faz sentido as pesquisas também se tornarem globais?MB – Claro! No ano passado eu elaborei um projeto com duas colegas latino-americanas, uma equatoriana e uma colombiana, para um encontro em Bogotá sobre o Renascimento Italiano visto da América Latina. Quando eu comecei a estudar, nos anos 90, muita gente aqui no Brasil me perguntava: “Por que você, mesmo sendo brasileira, vai trabalhar com Renascimento?”. Ou seja, se eu sou brasileira, eu deveria pesquisar Brasil. Isto felizmente mudou muito nos últimos 20 anos. Na verdade, os grandes temas não existem, existem temas, paixões nossas, afinidades. Existem, sim, temas que são muito estudados, como o Renascimento. E quando o tema é muito estudado, você precisa ter acesso a boas bibliotecas para poder ler os textos, ir aos lugares, ir até a Itália.RH – O historiador da arte precisa então viajar.MB – Por mais que as imagens estejam hoje disponíveis na internet, você tem que ir, tem que ter a experiência. Eu fiz Unicamp porque era lá que tinha História da Arte. Ela era, e ainda é, mais rica que qualquer uma daqui, tínhamos uma reserva que me permitiu viajar duas vezes a Roma. Sem isso eu não teria podido escrever, teria sido impossível, não havia material mesmo. Nós íamos para a Itália, duas colegas e eu, e voltávamos com a mala cheia de livros. Hoje em dia, com todos os portais em que se podem acessar os grandes temas, relativizou-se ainda mais.RH – Temos mais traduções, mas a barreira da língua continua, não?MB – Sim, mas mesmo a limitação da língua está diminuindo. Eu noto isto como professora. Eu comecei a dar aula há 10 anos atrás e hoje em dia eu acho que a internet está forçando as pessoas a terem pelo menos um inglês instrumental. Eu sempre digo para os estudantes: inglês e espanhol, não tem conversa, senão é muito difícil. Não posso exigir alemão, mas inglês não tem como não ser. Voltando à pergunta primeira, o grande tema é algo inaceitável. É claro que se você quiser trabalhar com Boticelli, levará muito tempo só para controlar um pouco a bibliografia, é esta a única dificuldade. Qualquer pessoa pode estudar qualquer coisa, é só ela ter vontade.RH – Tem visto pesquisadores de outros países pensando o mesmo?MB – Sim, falamos disso em Bogotá no ano passado. Queremos expandir o projeto para pensar o tema de uma forma global, assim como era a circulação de artistas e imagens dentro e fora da Europa. O Renascimento não é uma via de mão única, não é só a Itália para o mundo, mas também o contrário. O mesmo se aplica ao pesquisador. O que um historiador da arte chinês, por exemplo, tem a dizer sobre o Renascimento? Ele tem outro olhar, ele foi a escolas diferentes, ele viu outras coisas na infância, ele foi a distintos museus, ele fala outra língua.RH – Há mais pesquisas coordenadas por instituições de diferentes países?MB – Sim. No nosso caso, temos um organismo que se chama Renaissance Society of America, interdisciplinar, que propõe sessões que se chamam Renascimento Global. Eu, como brasileira, não quero ir lá para falar do Brasil no século XVI, eu quero ir para falar do Laocoonte, de Michelangelo. Aí sim eu vou acreditar que o meu passaporte brasileiro não é um obstáculo. Eu lembro que quando eu fui para a Itália no início dos anos 80, olhavam para mim como se eu fosse exótica. “Uma brasileira que está chegando aqui, que atrevimento”. Ao mesmo tempo, “que gracinha, que fofo!”. É assim, até você conseguir fazer com que as pessoas te levem a sério... Mas isto mudou muito. Está mudando.RH – E quando você foi para universidade, já foi pensando em Renascimento?MB – Não, eu tinha muito interesse pelo passado mais remoto. Do século XVIII para cá me interessava menos. Eu entrei em 1986, e pouco depois entrou quem seria o meu orientador de mestrado, o Luiz Marques, da Unicamp. Ele e mais outros dois colegas começaram a fundar uma espécie de núcleo de história da arte que não existia no Brasil. Antes era algo que ninguém sabia muito bem o que era. Aí você puxava eletivas sobre história da arte – eu puxei todas. Fiz o mestrado com ele e, aí sim, trabalhei com Renascimento. Eu queria fazer história da arte no doutorado, mas no Brasil não tinha nenhum curso de história da arte que eu quisesse fazer. Então, eu consegui uma bolsa e fui fazer o doutorado em Hamburgo.RH – Qual foi a importância de ter estudado em Hamburgo?
MB – Bom, para começar, ter tido que aprender alemão foi fundamental. Nem todos os textos eram traduzidos e, por isso, eu acabei tendo acesso a muitos textos. Por exemplo, [Aby] Warburg só foi traduzido para o português recentemente. Antes você não encontrava nem em inglês. Não se esqueça também que lá se formou aquela que ficou conhecida como Escola de Hamburgo. Professores que fugiram da Alemanha nos anos 30, quase todos judeus, que se tornaram referência, foram para Londres e Estados Unidos. Nomes como [Ewin] Panofski, por exemplo.RH – Como vê a separação entre história social e história da arte?MB – Eu fiz graduação em História, mas tive a sorte de ter professores de história da arte. A diferença é a maneira como se lida com a imagem. Há fontes literárias e fontes iconográficas para você tentar entender um momento ou um processo. Por vezes, a imagem aparece como uma ilustração. Quando você trabalha a história da arte, ela não tem um papel secundário, o papel dela é primordial, você parte dela. Nos meus cursos de graduação, eu mostro imagens do início ao fim e coloco alguns textos de apoio na minha pasta, pois a carência de repertório visual é enorme, quase não existe nas escolas. Na realidade, o que eu faço é discutir as imagens de vários pontos de vista. A imagem tem um papel fundamental em sociedades muito diferentes das nossas, que são sociedades bem menos letradas e, nelas, a imagem tem um papel protagonista.RH – Há uma aproximação também no que se chama de cultura popular e cultura erudita, não é?MB – Ah, sim! Este é outro dogma que faria bem tentar resolver. Muitas vezes eu começo um curso mostrando a Monalisa para os estudantes e perguntando a eles se aquilo é arte erudita ou popular. É claro que é popular, todo mundo conhece. Talvez você mostre uma obra do [Hélio] Oiticica e a pessoa não reconheça. Esta é uma cisão inventada pela elite e é uma dicotomia completamente contraprodutiva.RH – Qual o diferencial da formação em história da arte?MB – Nosso diferencial é a percepção visual, que é aguçada pela experiência e pelo contato com as obras. A história da arte foi considerada durante muito tempo uma disciplina elitista, e é fácil descobrir o porquê disso. Sempre foi necessário viajar e, se você não tivesse dinheiro para viajar, não tinha como ser historiador da arte. Como disciplina, remonta ao século XVIII, e realmente no século XIX não havia historiador da arte pobre.RH – E isto permanece assim?MB – Acho que não, hoje em dia isto está se modificando. Mas eu ainda vejo nos meus alunos, como grande obstáculo, essa dificuldade no refinamento, no treinamento do olhar. Trata-se de um treinamento visual, não é só um exercício de erudição. E não basta o acesso pela internet. Na hora de fazer as sinapses, isto é, quando você precisar estabelecer relações entre imagens, a internet não ajuda. Depende então da formação de um repertório visual. Há um conjunto de artistas que é preciso conhecer. Você pode gostar ou não gostar, mas tem que conhecer. O que tentamos fazer no curso é dar aos alunos essa formação visual.RH – Além da Alemanha, você também estudou na Holanda? Academicamente, qual a diferença entre estes dois países?MB– A Alemanha é o país mais rico da Europa, onde hoje em dia se faz história da arte com dinheiro. A Holanda, por outro lado, tem uma tradição forte no fazer artístico, mas investe muito menos em educação. A Alemanha tem universidades gigantescas, como a França, nas quais não é especialmente difícil entrar, além de serem gratuitas, com excelentes bibliotecas, bolsas de incentivo à pesquisa etc. A Holanda é toda ela mais modesta, mas é um país muito simpático. A importância desses lugares é o contato com os colegas e, sendo lugares muito cosmopolitas, você conhece gente do mundo inteiro. E isto não tem preço. No Brasil, temos uma universidade muito provinciana, não é fácil chamar gente de fora.RH – Isto é algo que permanece na forma como elas se organizam?MB – Sim, as universidades não ajudam. Nos concursos das universidades públicas você tem que ser ou brasileiro ou residente. Eu tenho um colega, por exemplo, que montou um curso de História da Arte na Unefesp. Ele é alemão, mas residente no Brasil há algum tempo, e ele queria fazer um curso realmente muito amplo. Queria um especialista em arte japonesa, um especialista em arte islâmica, mas não existem brasileiros especialistas nestas artes. E aí como é que se traz um professor? Não se traz. A universidade coloca como entrave o fato de o professor ter que ser brasileiro ou residente. Ficamos só com professores brasileiros. Eu acho que a universidade brasileira, infelizmente, é provinciana e corporativista, e é difícil conseguir abrir. É decepcionante.RH – Por isso o esforço de parcerias com universidades latino-americanas?MB – Bom, se é lícito, acho que a gente sempre tem uma coisa meio pessoal. A minha mãe é argentina e eu me criei em parte na Argentina, e eu percebi desde a mais tenra infância que o Brasil realmente vive de costas para seus vizinhos. Seria muito interessante que estudantes brasileiros pudessem ir mais para seus países vizinhos. Pensando nisso, começamos, com dois colegas da Uerj – Roberto Cunduru e Vera Siqueira – um projeto chamado “Unfolding Art History in Latin America” (Desdobrando a História da Arte na América Latina). O nome está em inglês porque submetemos à Getty Foundation.RH – Qual o objetivo?MB – A proposta era promover o intercâmbio de professores e estudantes durante um ano e meio, o que acabou virando quase dois, em cinco países – Colômbia, Equador, Brasil, Argentina e México. É um projeto supercomplicado, caríssimo, que envolve trânsito de professores e estudantes de pós-graduação.RH – E os temas são variados?MB – Este projeto específico está voltado para o século XIX, o que é curioso, já que nem é nossa área de atuação. Pensamos no século XIX, em parte, por causa da nossa própria negociação com a Getty, que percebeu que esta era uma coisa pouco estudada; em parte, porque é um momento de busca identitária na América Latina. É um momento em que os países estão criando uma imagem de si mesmos. A gente fez isso a partir do estudo de três tradições: clássica, moderna e não ocidentais. O diálogo interamericano é um filão que ainda não foi explorado na história da arte.RH – Você tem testemunhado e participado de uma grande mudança no estudo de história da arte aqui; dá pra ver isso acontecendo dentro da universidade?MB – Muito! A mudança é enorme! Ainda há muitas falhas, muitas pessoas que chegam despreparadas, algumas que me dizem que foram ao museu pela primeira vez quando já estavam na universidade. Às vezes você tem que correr atrás do prejuízo, mas o atraso é muito menor do que era antes. As pessoas estão procurando viajar. Infelizmente, a universidade não ficou mais aberta. Não pelos professores e alunos, mas pelas suas travas internas. As barreiras nacionalistas no mundo acadêmico não fazem sentido. Poderíamos ter um contato maior com o outro, com pessoas de diferentes lugares do mundo se a universidade fosse mais aberta.RH – Qual é a importância do ensino de história da arte nas escolas?MB – Eu sei que o Colégio Pedro II começou esse programa e, como professora, eu percebo nos alunos esse diferencial. Quando as pessoas não têm uma formação prévia, elas têm um receio. Acham que a arte é algo que está fora da nossa cultura, que é assunto para especialistas. Eu sempre busco trabalhar, no início do curso, mostrando imagens de cunho religioso. Por causa da nossa formação católica, as pessoas reconhecem algumas figuras. Nas escolas, os bons professores treinam esse olhar, criam-se um repertório visual e estratégias para entender uma obra. Esse processo quebra a distância. Eu acredito que é parte da educação humana, assim como a música. Não entendo como a história da arte não consta do currículo. Eu acho absolutamente fundamental.
Maria Berbara
Bruno Garcia