Marinho contra a ditadura

Lucio Haeser

  • Uma revolução começou em Porto Alegre na manhã de 1º de março de 1971, uma segunda-feira. As ondas do rádio foram usadas abertamente para protestar contra a ditadura instalada no Brasil em 1964. O movimento foi deflagrado pela Rádio Continental, uma emissora de Roberto Marinho (1904-2003), então um fiel aliado do golpe militar.

    No início da década de 1970, o dial de Porto Alegre tinha – com duas ou três exceções – apenas emissoras com programação popular e eclética. Nenhuma delas era dirigida aos jovens, ávidos por um veículo que falasse a sua língua e rodasse o som quente do pop e do rock internacional.

    Da Continental, os jovens gaúchos, ou os “magrinhos” e “magrinhas”, como ficaram conhecidos em uma das gírias difundidas pela rádio, receberam vertentes da música brasileira – como o Clube da Esquina e o Tropicalismo – que não estavam nas demais rádios. Além disso, a emissora enfrentou a ditadura armada de uma redação crítica e debochada. Por estar em uma cidade marcadamente de oposição àquele regime, foi um sucesso imediato.

    O principal responsável pela revolução radiofônica foi Fernando Westphalen (1937-2009), o “Judeu”, apelido que recebera na infância. Porto-alegrense, não “engolia” a ditadura, como ele mesmo dizia. Convivia com pessoas de oposição ao regime, como o casal Carlos Araújo e Dilma Rousseff, que integrava a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares, a VAR Palmares.

    Aos 34 anos, o radialista e publicitário Judeu trabalhava na agência de publicidade MPM quando foi procurado pelo Sistema Globo de Rádio para gerenciar a deficitária emissora comprada em 1965. Na época, os meios eletrônicos de comunicação, que poderiam ter suas concessões de funcionamento cassadas, eram mantidos em total subserviência. Mal sabia a direção do Sistema Globo que a recuperação da saúde financeira de sua rádio em Porto Alegre se daria com uma guinada à esquerda. Até onde foi apurado, Roberto Marinho morreu sem saber das estripulias de seus “garotos do sul”.

    Judeu queria um canal para fazer a cabeça da juventude. Pretendia falar com os que já tinham consciência de que a ditadura precisava ser combatida e abrir os ouvidos dos que viviam na alienação. O foco escolhido foi o público universitário.

    A novidade se espalhou rapidamente. Os ouvintes da Grande Porto Alegre, em geral habituados a sintonizar entre os 600 kHz e os 880 kHz em AM, começaram a ir aos distantes 1120 kHz. A Continental começou a apresentar uma programação diferente, e o público recebeu muito bem a novidade.

    Instalada no quinto andar do Edifício do Relógio, em frente à Praça da Alfândega, no Centro de Porto Alegre, a rádio disparou na audiência. Os jovens queriam rock? Tudo bem, eles teriam. Mas, a cada música estrangeira, iriam escutar uma música brasileira. De preferência, do repertório de músicos que eram vítimas ou se posicionavam contra a ditadura, como Chico Buarque, Gonzaguinha, Elis Regina, Gil e Caetano. Quando a gravação de Chico da música “Apesar de você” foi proibida, a Continental começou a rodar a versão de Beth Carvalho.

    A 1120 logo começou a dar o seu recado com dois programetes ao meio-dia, horário de grande audiência na época. Em 1971, as três emissoras de TV de Porto Alegre entravam no ar depois das 14h. A crônica de Luis Fernando Verissimo e o “Horóscopo da Pesada” foram os primeiros espaços a chamar a atenção dos censores. Nos documentos do Serviço Nacional de Informações (SNI) – órgão de inteligência do regime militar –  sobre a Continental, o escritor é acusado de “comportamento anti-revolucionário e anarquista”. Verissimo acha até que nem era tão agressivo, mas cansou de ver seus textos suspensos e parou com a crônica.

    O “Horóscopo da Pesada” fazia graça e política com as previsões, que eram sempre as piores possíveis: “A conjunção da quinta lua de Saturno com o planeta Mongo te criou uma situação terrível. Tu tá ferrado total. No amor, nem pensar. Dinheiro, que é bom, vai voar todo. Tu tá na pior, cara, e tu tá tão azarado que vai ter que ouvir uma música com o Jerry Adriani”. Mas, para consolo geral, havia o 13º signo: o Exílio, uma referência ao caminho que muitos opositores da ditadura tiveram que tomar.

    A Continental precisava deixar claro aos “alienados” que o governo dos militares era um regime de exceção. Assim, em maio de 1972, entrou no ar o programa “1120 é Notícia”: uma síntese informativa das principais manchetes, com três minutos de duração, transmitida de hora em hora, das 8 da manhã até a meia-noite. A redação era feita preferencialmente por estudantes de jornalismo, militantes de esquerda ou ambos. Um deles, Wladimir Ungaretti, saiu das sessões de tortura direto para a redação do noticiário. Os textos eram redigidos com base na escuta e na leitura de outros jornais. Recebiam outro tratamento, com o uso de gírias, e, sempre que possível, debochavam dos militares.

    No dia 25 de agosto de 1973, Dia do Soldado, a entrega da mais alta condecoração do Exército brasileiro, a Medalha do Pacificador, foi tratada no programa como uma “farta distribuição de latinhas”. Como em outras vezes, a rádio chegou a ser invadida por militares armados. Um processo foi aberto, e meses mais tarde veio a punição: três dias fora do ar.

    Os recados da Censura chegavam por telefone. Em 1977 e 1978, o então coordenador de jornalismo, Adroaldo Corrêa, registrou por escrito as ordens dos censores para repassar à equipe. A primeira delas foi em 1º de fevereiro de 1977: “Tá proibida qualquer referência à entrevista do físico José Goldenberg sobre o acordo nuclear Brasil-Alemanha”.

    A Continental usava todos os artifícios possíveis para driblar a censura. Estava vetado, por exemplo, noticiar a morte do presidente João Goulart, em 6 de dezembro de 1976. Então, a 1120 passou a anunciar, para dali a sete dias, uma missa de sétimo dia na Catedral Metropolitana de Porto Alegre em homenagem a Jango.

    Em várias ocasiões, os recados da Censura ajudaram os redatores. Às vezes, ninguém sabia nada sobre determinado assunto, mas a proibição de abordá-lo chamava a atenção da equipe. Dada a pista, o redator buscava mais informações e sinalizava nas entrelinhas que havia algo no ar. Foi o caso de uma notícia que envolvia a família Geisel.

    No início de 1977, o ministro da Fazenda, Mário Henrique Simonsen (1935-1997), propôs o racionamento de combustível. O redator Eduardo Meditsch juntou esse fato com uma viagem feita pela filha de Geisel no avião presidencial, de Brasília para o Guarujá (SP). Depois de noticiar a campanha do governo pela economia de gasolina, escreveu: “Mas o presidente não conseguiu sucesso na sua própria casa. Vejam que a senhorinha Amália Lucy pega um avião, vai ao Guarujá sozinha para o fim de semana e volta. Vazio, vazio”. Meditsch ainda informa o quanto de combustível é gasto no trajeto e arremata: “Como todos sabem, o presidente Geisel é um homem religioso. Por falar em religião, começa na próxima semana a Campanha da Fraternidade, cujo lema neste ano é ‘Comece em Casa’”.

    O Exército enlouqueceu. Achou que a rádio sabia o que estava por trás daquela viagem. Porque – Meditsch jamais poderia supor – aquele não era um voo de turismo. Amália Lucy fora levar uma mensagem ao general Dilermando Gomes Monteiro, comandante do Exército no interior de São Paulo, para destituir e ocupar o lugar do comandante do II Exército, Ednardo D’Ávila Mello. O motivo foi a ocorrência de mais uma morte – não tolerada por Geisel – em um dos centros de tortura sob a responsabilidade do general Ednardo. Na redação da Continental, a “ficha caiu” só alguns dias depois.

    Talvez piores do que as proibições da Censura eram as ameaças de grupos de ultradireita. Pelo menos dois recados foram enviados à Continental pelo Movimento Anti-Comunista (MAC). E como as bombas estavam na moda, um falso artefato foi deixado na rádio no dia 29 de outubro de 1976.

    No fim  de 1977, ano de fechamento do Congresso, Judeu cansou da luta. A gota d’água foi a aplicação da maior multa prevista na legislação para uma rádio – Cr$ 43.758,38, equivalente hoje a R$ 30 mil. A causa foi a divulgação de um discurso feito na Câmara de Porto Alegre que resultou na cassação dos vereadores Marcos Klassmann e Glênio Peres.

    Judeu deixou a rádio no dia 31 de dezembro de 1977 e em seu lugar assumiu Marcus Aurélio Wesendonk, que fora diretor de programação desde 1971. A partir de 1978, já com a concorrência de emissoras em FM dedicadas ao público jovem, os resultados começavam a declinar. Até que, no início de 1980, a Globo decidiu acabar de vez com a Continental e impôs a velha programação. Era o fim da rádio dos sonhos da “magrinhagem” gaúcha.

    O balanço feito por Westphalen, que morreu em 15 de julho de 2009, sobre a influência da Continental na conscientização política dos jovens gaúchos nunca foi muito otimista. “Canalizamos para a rádio os que já contestavam. Mas ampliar? Talvez alguns ouvintes tenham se conscientizado por nossa causa. Mas muito longe da expectativa inicial”. Independentemente dos resultados políticos, até hoje a Continental é lembrada com reverência por aqueles que desfrutaram o privilégio de terem-na como aliada. É como Judeu a definia, tomando emprestado o nome da obra de Shakespeare: “A Rádio Continental foi um sonho de uma noite de verão”.

    LUCIO HAESER é coordenador de Radiojornalismo da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) e autor de Continental, a rádio rebelde de Roberto Marinho (Insular, 2007).  


    Saiba Mais - Bibliografia

    FERRARETO, Luiz Artur. Rádio e capitalismo no Rio Grande do Sul: as emissoras comerciais e suas estratégias de programação na segunda metade do século 20. Canoas: Editora da Ulbra, 2007.

    Saiba Mais - Internet

    www.continental1120.com.br

    Sérgio Francisco Endler. “Rádio Continental AM: Histórias e narrativas, em Porto Alegre, de 1971 a 1981”. Tese, Unisinos, 2004.
    www.eptic.com.br/arquivos/Publicacoes/Tesis/tesis2.pdf