“Eu disse isso? Tem certeza?... É, acho que é isso mesmo!”
Pronto, dei vexame! Nessas horas, não sei se é a velhice chegando ou se foram os neurônios levados pelas farras que fiz, quando eu ainda aguentava uma. Mas, confesso, já me aconteceu de perguntarem sobre algo que eu havia escrito anos antes e eu simplesmente não conseguir me lembrar em detalhes do assunto. Meu único consolo é que, ao conversar com outros historiadores, ouço muitos contarem vexames semelhantes. Conclusão óbvia: o texto publicado escapa do nosso controle. Vira historiografia. E a vida continua, pois trabalhamos como qualquer outro profissional, e a profissão também tem suas rotinas. Há dias em que as coisas não andam, mas nem por isso desistimos. A recompensa maior é o indescritível prazer de ver concluído um trabalho que consideramos importante. Aí, passamos à pesquisa seguinte. Aprendi a dizer, humildemente, que tudo que eu sabia sobre aquele assunto está ali, naquela publicação. Não há segredos.
No meu caso, o esquecimento seletivo (ótimo eufemismo para falta de memória, simplesmente) tem uma desculpa (ou um agravante, se preferirem). Eu gosto de mudar de assunto. Sigo a sábia sugestão de um professor amigo meu que havia escrito um trabalho importante nos anos 70 e depois mudou completamente de tema, e até de área do conhecimento. Uma vez perguntaram a ele por que havia feito isso. A resposta foi: “Eu já mudei de país, mudei de mulher, mudei de casa, por que não posso mudar de assunto?”
Se para mim é impossível lembrar todos os detalhes de uma pesquisa feita há dez, 15 anos, felizmente nem todo mundo é assim. Tenho um amigo que se lembra de tudo. E nem posso dizer que leva uma vida mais saudável que a minha, pois ele é também um tremendo conversador e respeitável entornador de cervejas – o que, para mim, é elogio, mas como nem todo mundo pensa assim, melhor não revelar o nome dele.
Mas, além dos detalhes da pesquisa, seus avanços e recuos, há também o lado mais prosaico da profissão: prazos, relatórios, simpósios e congressos onde mostramos os resultados obtidos. Quando terminei o doutorado, pensei ter encerrado ali meus problemas com prazos, prestação de contas, com a necessidade de me submeter ao crivo dos pares. Era exatamente o contrário! Mas não me queixo. O problema existe se faltar curiosidade ou imaginação. Aí é melhor mudar de ramo. Agora, a verdade é que quem gosta disso segue adiante. Nunca vai faltar o que fazer, nem com quem compartilhar as descobertas, as dúvidas, o entusiasmo e até as chateações normais de qualquer profissão. E, convenhamos, se não fossem os pareceres que recebemos, seríamos capazes de dizer muito mais besteira. Aliás, agradeço desde já aos pesquisadores da Revista de História da Biblioteca Nacional pelas críticas feitas a este texto aqui. Bem, vamos mudar de assunto?
Marcus J. M. de Carvalho é professor da Universidade Federal de Pernambuco e autor de Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo, Recife 1822-1850 (Editora Universitária – UFPE, 2002).
Mas eu disse isso?
Marcus J. M. de Carvalho