Se ainda hoje o nepotismo é um mal que corrói as instituições, seus efeitos eram ainda mais perversos no tempo em que seres humanos eram legitimamente tratados como coisas. O conteúdo de uma carta de 1836, escrita por uma mãe revoltada, dá a dimensão da desigualdade brasileira na era da escravidão.
Maria Nunes dos Reis relata ter três filhos mantidos como escravos ilegalmente. Maria Madalena, embora nascida “de ventre livre”, ou seja, liberta, foi vendida por José Teixeira a João Baptista de Souza e “por este duas vezes vendida ao Ex. Juiz de Fora, que foi desta Comarca João Chrisostomo Pinto da Fonseca”. Pedro havia sido libertado por sua falecida senhora, enquanto Paulo também era “de ventre livre”, mas ambos encontravam-se em “depósito”, condição para aqueles que aguardavam a tramitação do processo de libertação.A carta de Maria Nunes é uma cópia produzida em 1842 e vem acompanhada de dois outros documentos da mesma data – um requerimento e o laudo do exame de corpo de delito realizado em Pedro – e juntos ajudam a revelar o seu drama. A carta original, no entanto, é datada de 1836 e foi assinada pelo escrivão Antônio Francisco dos Santos Silva. A luta empreendida por ela àquela altura já durava no mínimo seis anos.Conforme a acusação, os autos estavam em fase de conclusão quando houve um revés: o ouvidor responsável, José de Assis Mascarenhas, não despachou os documentos, retirou Pedro e Paulo do depósito e entregou, como escravos, a Joaquim Marcelino Camargo. Acontece que Camargo era casado com Antônia Ludovica, tia do ouvidor e cunhada do presidente da província de Goiás, José Rodrigues Jardim. Sem ter a quem recorrer diante desse emaranhado de favorecimentos entre as autoridades, Maria encaminha a carta a João Gomes Machado Corumbá, que era deputado pela província de Goiás na Assembleia Geral Legislativa.Ao se queixar das dificuldades para a conclusão do processo, Maria denuncia os interesses pessoais e desfia os laços de parentesco que comprometem as ações do poder público, impedindo que a justiça seja feita: “Vendo na administração da Justiça, digo na administração da Província, um Padrasto, como primeiro empregado na Administração Judiciária um Enteado, como primor Comandante da força armada um Cunhado, na Sala das Ordens um Concunhado, todos rodeados de parentes, e íntimos amigos, afilhados e dependentes de maneira, que lançando mão de todos os meios e recursos até acusado ao Conselho Geral da Província nada obtive, e nem poderei obter”. Também acusa o ouvidor de ocultar o processo, mas demonstra confiança na disposição do deputado Corumbá para localizar os autos, já que ele é “testemunha ocular dos horrores, e arbítrios cometidos por pessoas, e agentes dessa família dominante”.A carta informa ainda que Maria enviou uma procuração a Corumbá “rogando a V. Exa a esmola de proteger-me, e aos meus desgraçados filhos contra tão poderosos opressores, quais a família Governante de Goiás”, e acrescenta que entregou ao genovês José Estevão Grondona, que fora opositor de D. Pedro I, documentos para que este pudesse agir na Corte do Rio de Janeiro em seu favor, com fins de obter proteção do Ministério do Império.
Ao final dos documentos, encontra-se uma declaração do mesmo escrivão que transcreveu a carta para Maria em 1836, informando que os libertandos Pedro e Paulo encontravam-se novamente em depósito. Mas o processo continuava desaparecido, e a única nova prova do crime praticado fora obtida através do exame de corpo de delito em Pedro, para comprovar os maus-tratos executados por Camargo, que o deixaram paralítico. Sobre a filha Maria Madalena, não consta nenhuma nova informação.A Carta de Maria Nunes dos Reis solicitando a liberdade de seus filhos, injustamente escravizados está guardada na Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional. O manuscrito integra a Coleção Documentos Biográficos, proveniente do arquivo da Secretaria de Estado dos Negócios do Império, órgão com funções administrativas, e importante fonte de documentos ligados ao campo das práticas sociais no Império.Não se sabe o desfecho da busca incansável de Maria Nunes Reis por todos os recursos possíveis para conseguir a liberdade dos filhos, no interior do Brasil, contra altos poderes de uma elite escravocrata, o que pode provocar suposições felizes ou infelizes. Esse drama, contudo, é mais um exemplo da resistência negra à escravidão presente em nossa história.
Matriarcas contra o Estado
Maria de Fátima da Silva Morado e Mariane Silva Duarte