Memória em apuros

Juliana Barreto Farias

  • Gravura da cidade de Salvador feita no século XVII por Hessel Gerritsz. O Arquivo Público da Bahia reúne documentos menos importante do período colonial

    Desde outubro do ano passado circula na Internet petição de 800 estudantes e professores baianos e de outros estados exigindo o reparo imediato das instalações elétricas do Arquivo Público da Bahia (APB). Como havia risco de incêndio, a energia foi cortada há um ano. E os pesquisadores se viram obrigados a disputar um lugar perto das janelas das áreas de consulta em busca de claridade e ventilação.

    A luz não retornou, mas, um mês depois da divulgação do abaixo-assinado, o problema foi provisoriamente resolvido. Uma pequena sala no primeiro andar, que ainda dispõe de eletricidade, foi reservada para as pesquisas. E o historiador Ubiratan Castro de Araújo, presidente da Fundação Pedro Calmon, a instituição estadual responsável pelo arquivo, garante que a reforma já foi aprovada e em breve será executada. O episódio trouxe à tona a discussão sobre o estado precário dos acervos públicos de Salvador e das cidades do Recôncavo baiano.

    Considerado o segundo arquivo mais importante do país, depois do Nacional, no Rio de Janeiro, o APB está, desde a década de 1980, instalado na Quinta do Tanque, no bairro da Baixa de Quintas, periferia da capital. Até meados do século XVIII, o local abrigava a casa de repouso dos jesuítas. Após algumas reformas, foi transformado em leprosário. Como bem sabiam os jesuítas, o prédio foi erguido em área com duas fontes de água e muita umidade. Ou seja, a bela construção colonial tombada pelo Iphan nunca foi apropriada para abrigar um acervo histórico que inclui preciosidades como o conjunto documental do Tribunal da Relação do Estado do Brasil, atual Tribunal de Justiça. Só nesta coleção estão reunidos cerca de 60.000 documentos produzidos entre 1652 e 1822, como termos de posse de desembargadores, processos e sentenças judiciais. A partir desses registros, os pesquisadores têm reconstituído aspectos de nossa burocracia e da sociedade colonial.

    “Como Salvador foi a capital do vice-reinado até 1763, o arquivo possui documentação que toca a história de todo o país. Houve, é verdade, um incêndio no final do século XVIII que destruiu uma parte do acervo, mas ainda é riquíssimo para o período colonial. E para quem se interessa pela Bahia, é o ponto de partida essencial, inclusive por ter adquirido grande número de documentos de cartórios da região”, destaca o historiador americano Richard Graham, professor aposentado da Universidade do Texas e autor de várias obras sobre o Brasil.

    Mas, como reconhece a diretora do APB, Maria Tereza Navarro de Matos, o local onde a instituição está instalada não é adequado para um arquivo. “Hoje, nossa maior reivindicação é a transferência para outro lugar, próximo ao centro administrativo, onde estão os órgãos do poder. Tanto para modernizar as instalações como para assegurar o recolhimento e a conservação dos documentos”, explica.

    O professor João José Reis, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), autor de clássicos sobre a história baiana, também acredita que o arquivo precisa de uma casa nova. E urgentemente. “A preservação da memória histórica, sobretudo a memória não monumental, não parece fazer parte das prioridades do governo da Bahia. Antes disso tem carnaval, tem Copa, tem ponte...”

    Ao longo de sucessivas gestões, os investimentos não acompanharam o crescimento do acervo. Os depósitos não estão climatizados. Só recentemente as estantes foram alinhadas e a higienização da documentação tornou-se regular. Não à-toa, quando a Superintendência de Construções Administrativas da Bahia e o Corpo de Bombeiros vistoriaram a rede elétrica, foi determinado o corte imediato da energia.

    “Tomamos as providências defensivas. Isso em conflito com os pesquisadores. Mas foi tentando protegê-los e para não fechar o arquivo. Toda a reforma do sistema já está licitada, o que vai resolver parte dos problemas”, reafirma Ubiratan Castro.

    Todos reconhecem que essas ações não serão suficientes. “A impressão que se tem, olhando de fora, é que o governo do estado não tem verba ou não quer investir. Falta de recursos não é. Se folhearmos o Diário Oficial e somarmos o que foi investido durante um mês pela Secretaria de Cultura em bandas, shows, festas populares...”, calcula o pesquisador Urano Andrade. De fato, só para o carnaval deste ano no Pelourinho, o governo destinou cerca de R$ 1,5 milhão para a apresentação de bandas e artistas independentes. Isso não quer dizer que esses eventos não mereçam apoio público, apenas que os recursos deveriam ser mais bem distribuídos. “Inclusive porque eles também ganham dinheiro em cima dessa suposta preservação do patrimônio. Estamos falando de um estado que tem um turismo forte e que se volta muito para a história, a cultura”, completa André Almeida Rego.

    O professor Ubiratan de Araújo tem opinião semelhante. “Apesar de a história fazer parte do discurso do turismo, o comum entre gestores é olhá-la com desapreço. Isso só está melhorando por causa da pressão dos historiadores baianos. De nossa parte, em termos bem pragmáticos, até o fim deste governo (em 2014), o objetivo não é a Copa, mas a solução para um novo arquivo”.

    Para que tudo se concretize, também é necessária a mudança no próprio status do Arquivo Público. Desde 2002, ele foi incorporado à Fundação Pedro Calmon, ligada à Secretária de Cultura,  e perdeu autonomia. “Enquanto o arquivo não recuperá-la, continuará de pés e mãos atados. Só com muita força política para voltar a funcionar plenamente”, destaca a historiadora Cristiana Lyrio Ximenes, professora da Universidade Estadual da Bahia (Uneb).

    Se as soluções estão difíceis no maior acervo público da Bahia, nos arquivos do Recôncavo a situação é pior. Na cidade de Cachoeira, a 110 quilômetros da capital baiana, o arquivo municipal ainda funciona de forma precária. Até a década de 1980, muitos documentos sobre a cidade e outras áreas do Recôncavo ficavam amontoados numa sala da Câmara de Vereadores, como registros sobre produção de fumo e açúcar; rebeliões escravas; atas e posturas municipais; processos-crime e inventários. Foi aí que o americano Stuart Schwartz encontrou farta matéria-prima para seu clássico estudo sobre engenhos e escravos na sociedade colonial, o livro Segredos internos, publicado no Brasil na década de 1980.Mas, como é comum na região, a ideia de organizar um arquivo só surgiu quando um prefeito decidiu jogar no lixo boa parte do material. Com a interferência do Iphan, tudo foi levado para uma bela construção na Ladeira da Cadeia, e só então começou a ser sistematizado.

    Em 2004, houve nova mudança de endereço. Desta vez, para um prédio à beira do Rio Paraguaçu, sem qualquer estrutura para receber o arquivo. “O espaço para pesquisa é muito pequeno, não tem luminosidade ou ventilação. Quem tem problema respiratório não consegue ficar nem vinte minutos naquela colônia de fungos”, reclama o pesquisador cachoeirano Luiz Cláudio Nascimento. Para proteger o lugar e evitar maiores danos, o secretário de Cultura e Turismo do município, Lourival Damião Trindade Filho, responsável pela gestão do arquivo, tem limitado as consultas. “Obedeço a um critério: se você está desenvolvendo uma pesquisa, vem até a Secretaria, faz uma ficha com todas as suas informações, e eu autorizo. É uma responsabilidade muito grande ter sob guarda um dos acervos mais importantes da Bahia. Então, não posso pegar e deixar que isso fique de qualquer jeito”.

    Mesmo com tantos obstáculos, algumas boas ideias já começam a ganhar forma. Para os próximos meses está prevista a abertura, num prédio próximo à matriz de Cachoeira, do Centro de Memória e Documentação, uma parceria entre a UFRB e o Tribunal de Justiça da Bahia. Ali ficarão depositados todos os documentos dos fóruns de Cachoeira, São Félix, Santo Amaro, São Francisco do Conde e Maragojipe. “Além dos cuidados com a conservação, é preciso sintonizar o arquivo com a cidade. Na Europa, essas instituições são importantes porque atraem as pessoas para as localidades. São lugares de reconhecimento, de reflexão sobre a história, não só para os de fora, mas também para os de dentro. Isso é fundamental para a conservação da memória”, afirma Walter Fraga, professor de História da UFRB que está à frente do Centro e é autor de Encruzilhadas de liberdade: história de escravos e libertos na Bahia (1870-1910), livro que recentemente ganhou o Prêmio Clarence Haring, da American Historical Association, e também se baseia naquela documentação.

    Por enquanto, as iniciativas acabam tomando corpo quando um pesquisador ou grupo se empenha, quase heroicamente, na sua execução. Mas, como experiências na própria Bahia e em outras partes do Brasil vêm provando, os projetos só se tornam concretos e duradouros quando há envolvimento do poder público, da comunidade acadêmica e da própria sociedade.

    Juliana Barreto Fariasé jornalista e historiadora, autora de No labirinto das nações. Africanos e identidades no Rio de Janeiro. (Arquivo Nacional, 2005)

     

    Saiba Mais - Bibliografia

    JARDIM, José Maria. Sistemas e políticas de arquivos no Brasil. Niterói: Ed.UFF, 1995.

    Sistema de arquivos do Estado da Bahia. Salvador: Empresa Gráfica da Bahia, 1985.