Memória sustentável

Alice Melo

  • As ladeiras do Pelourinho viraram vielas escuras cheias de lixo. Os sobrados, casarões e igrejas construídos ainda na época colonial ficaram entregues à ação do tempo e de vândalos. O retrato nada feliz do centro histórico de Salvador permaneceu assim durante décadas, ilustrando o descaso do poder público com a região. Foi nos anos 1990 que tudo mudou. O governo da Bahia investiu cerca de 200 milhões de dólares num projeto de revitalização do Pelourinho, transformando Salvador numa atração turística mundial, mas, ao mesmo tempo, causou graves transtornos sociais com a remoção – sem planejamento – da população pobre que vivia no local. Ainda assim, as reformas foram consideradas bem-sucedidas pela mídia e garantiram a ampliação do poder político de seu promotor, o então governador Antônio Carlos Magalhães.

    Episódios como este – apontado em pesquisa realizada pela historiadora Sílvia Zanirato, professora de Gestão Ambiental na USP – são comuns nas grandes cidades brasileiras, que sofrem com o crescimento populacional desordenado e acelerado, e também com o mau uso do dinheiro público. Este tipo de projeto é um exemplo claro do que não deve ser feito quando o assunto é a conservação do patrimônio cultural. Hoje, ela só é considerada bem-sucedida se age em diálogo com a sociedade, numa perspectiva de desenvolvimento sustentável. Este mês, o assunto estará em pauta na conferência das Nações Unidas Rio +20, numa reunião aberta ao público conduzida por representantes do Instituto do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural (Iphan) e do Centro do Patrimônio Mundial da Unesco.

    “A política de patrimônio sozinha é incapaz de resolver o desafio da preservação, até porque, cada vez mais, o patrimônio é o sistema que o produz, um conjunto de valores”, afirma Luiz Fernando de Almeida, presidente do Iphan. Para ele, só é possível preservar se o bem – seja ele material ou imaterial – estiver integrado ao desenvolvimento da sociedade. O patrimônio, como lugar de memória, só existe se estiver vivo e de acordo com seu tempo. Esta concepção sobre a relação entre saberes e patrimônio é relativamente nova – ela vem sendo mais discutida nos últimos 20 anos.

    Em 2002, por exemplo, a Unesco realizou a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, reconhecendo a importância da preservação de práticas sociais como parte do patrimônio cultural. Este foi o marco oficial que transformou o patrimônio de algo apenas feito por mãos humanas em algo produzido pela convivência dos homens em diálogo com seu meio. Por isso é importante contextualizá-lo no âmbito das demais políticas públicas, inclusive as ambientais. Na primeira grande conferência sobre meio ambiente sediada no Brasil, a Rio 92, o assunto não esteve em pauta, já que essa integração ainda era uma ideia muito incipiente. Foi naquela reunião, aliás, que se definiu o conceito de desenvolvimento sustentável, tão utilizado hoje como elemento fundamental para a questão do patrimônio cultural nessa perspectiva mais ampla.

    É justamente esta a bandeira que o Iphan e a Unesco vão defender na Rio +20, numa tentativa de ampliar o debate e inseri-lo na sociedade. “Na medida em que o desenvolvimento da qualidade de vida representar melhores indicadores de educação e essa educação for qualificada, as tensões quanto às opções de modelo de desenvolvimento deixarão o patamar romântico da ideia da preservação de práticas e processos culturais como mera preservação do passado”, garante o presidente do Iphan.

    Neste sentido, conservar um bem público significa dar a ele uma função atual. Mas, por enquanto, é difícil pôr isso em prática. No caso de Salvador, as pessoas preocupadas com a salvaguarda do patrimônio vêm tentando, nos últimos dez anos, reinserir a população no Pelourinho restaurado.

    Programas como o PAC das Cidades Históricas (PACCH), que tem uma preocupação com a habitação social, traçaram como meta a transformação do espaço num ambiente com funções urbanas desenvolvidas. Mas, segundo a pesquisadora Sílvia Zanirato, ainda há dificuldades: “Hoje, veem-se ali hotéis, pousadas, um comércio popular, um uso mais heterogêneo do espaço e também, é claro, o retorno de problemas sociais, como a prostituição, a mendicância, as drogas. A inclusão da população como moradora local ainda é tímida”. Infelizmente, o caso se repete em outras cidades.

    Em São Luís, no Maranhão, por exemplo, a situação ainda é pior. No ano em que a capital completa quatro séculos de existência, os programas de inclusão da preservação do centro histórico num debate de desenvolvimento sustentável parecem andar para trás. A proposta de aliar a teoria à prática existe, mas as rivalidades políticas interpartidárias e a descontinuidade de projetos com as trocas de governo a cada quatro anos impossibilitam seu sucesso. Isso é o que aponta Kláutenys Cutrim, líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Patrimônio Cultural da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), acrescentando que os problemas são muitos e a intervenção da prefeitura e do governo do estado geralmente é pontual. “O centro histórico é legalmente protegido pelas três esferas do poder, mas, mesmo assim, vive um processo de abandono continuado”.

    O centro de São Luís, reconhecido como Patrimônio Mundial pela Unesco em 1997, tem cerca de 1.000 imóveis tombados pelo Iphan e 2.000 tombados em nível estadual. Kátia Bogéa, superintendente do Iphan no Maranhão, reitera a crítica de Cutrim e revela que o Iphan também não consegue dar conta de tudo que a cidade precisa por falta de mão de obra. “O Iphan tem, para o Maranhão inteiro, apenas quatro funcionários técnicos. Como podemos proteger o patrimônio cultural brasileiro desta forma?”. Ela conta que, nos anos 2000, o centro histórico passou por uma restauração de infraestrutura, que refez as galerias subterrâneas de água, luz e gás, recuperou a feira do bairro de Praia Grande, junto com os feirantes. O projeto não teve continuidade, e hoje o centro histórico voltou à situação de abandono.

    Mas há esperança de dias melhores. Um projeto do Instituto em parceria com o Ministério da Cultura, por exemplo, está levando alguns cursos da UFMA para a antiga Fábrica Santa Amélia, numa tentativa de recuperação da área que recebeu investimento de R$ 15 milhões do governo federal. Acredita-se que a instalação do campus no centro histórico vai dar vida ao entorno da construção do século XIX, gerando novos empregos, mesmo que numa perspectiva reduzida. Além disso, no fim do ano, uma linha de crédito a juro zero para moradores de casas tombadas deve ser aprovada, por meio de um acordo entre o PACCH e o Banco do Nordeste, permitindo que os moradores da região preservem suas casas.

    Em matéria de conservação de um centro histórico dentro de uma perspectiva de desenvolvimento sustentável, o projeto elaborado em Ouro Preto é o que mais se aproxima da teoria. A cidade mineira também sofre com problemas de habitação irregular – as encostas estão há anos sendo ocupadas irregularmente, um processo que provocou um alerta inclusive pela Unesco, já que o município é também Patrimônio da Humanidade. Mas, na opinião do historiador Paulo Knauss, diretor do Arquivo do Estado do Rio de Janeiro, Ouro Preto já saiu ganhando ao ter o patrimônio incluído como uma questão da cidade. “O patrimônio mais presente é o que a gente não percebe. Quanto mais integrada é a sociedade com determinados conjuntos de valores e bens, mais eles são capazes de permanecer vivos – é o caso da feijoada, que está tão viva que não precisa de proteção”.

    Ouro Preto vem tentando não só conservar o bem material, mas também trabalhar na preservação de tradições e técnicas de trabalho. “Para se preservar uma igreja colonial, marceneiros precisam conhecer a madeira da região e a técnica de construção usada na época. A necessidade da preservação do bem físico levou à reflexão sobre a preservação de saberes”, diz o pesquisador. Promover o patrimônio cultural significa prover laços sociais, que dependem da relação entre os homens e a História. Quando se trata de um conjunto arquitetônico – como é o caso de Ouro Preto, de Salvador e de São Luís –, é necessário que ele seja incluído nas políticas urbanas. Assim, é construído um diálogo entre homem, cultura e natureza – aspectos que não podem ser pensados separadamente.

    As discussões sobre o que deve ser feito para estreitar esses laços são fundamentais, mas a vontade do Estado e de seus aparatos políticos para que isso seja posto em prática nesse contexto é ainda mais essencial.

     

    Saiba mais - Bibliografia

    ZANIRATO, Sílvia. “A restauração do Pelourinho no Centro Histórico de Salvador. Potencialidades, limites e dilemas da conservação de áreas degradadas”. In: Historia Actual Online. 2007.

    CHOAY, F. A alegoria do patrimônio. São Paulo, Estação Liberdade-Editora da UNESP. 2001.