Memórias capitais

Marly Motta

  • Cinco décadas após ter deixado de ser a capital do país, a memória da capitalidade continua a ser um dos elementos fundamentais da identidade política do Rio de Janeiro. Esse passado foi transformado em uma tradição única e exclusiva do local, marcando simultaneamente o que lhe é próprio e o que o separa das outras cidades do país. Por isso, o primeiro desafio para os estudiosos do Rio é reconhecer o caráter específico dessa história, que carrega ao mesmo tempo a marca simbólica de representar a história nacional. 
     
    Afinal, o que significou ter sido a cabeça do Império e, até 1960, o Distrito Federal republicano? As respostas divergem, a comprovar como é movediço o terreno por onde se aventuram aqueles que, como eu, resolveram tomar como objeto de estudo a história política carioca. Boa parte dos analistas considera que a saída da capital provocou um esvaziamento do qual a cidade nunca conseguiu se recuperar. Aos “anos dourados”, representados pelo período em que fora o cérebro e o coração do país, se seguiram os “anos de chumbo”, com mudanças de estatuto político e administrativo que levaram a ex-capital federal à condição de estado da Guanabara (1960-1975) e de capital do estado do Rio de Janeiro. Há, no entanto, quem considere que seu pecado original foi ter sido capital do país por tanto tempo. A excessiva dependência do governo central teria impedido que a cidade se preparasse para resolver seus problemas de forma autônoma. 
     
    Embalada pelos efeitos da Eco-1992, que ressoaram na organização de um movimento em favor da volta da capital federal para a “cidade maravilhosa”, decidi apresentar, com vistas ao ingresso no doutorado de História da UFF, um projeto sobre a transferência da capital para Brasília e a transformação do Rio em estado da Guanabara. Cedo entendi que, além de desvendar os necessários cruzamentos entre as duas histórias (a nacional e a local), deveria tomar a ambiguidade da capital republicana – sede do governo federal e espaço de representação política da cidade – como o elemento crucial que a transformou, ao longo da República, em um laboratório de diferentes projetos políticos. 
     
    Mais do que tudo, no entanto, como historiadora e carioca, teria que enfrentar a memória desse passado de capital que insistia em se fazer presente. Precisava mostrar que os eventos da história do Rio haviam sido sugados para o terreno fluido e afetivo dessa lembrança, e feitos prisioneiros de um círculo vicioso que tornou a cidade refém do passado e, por isso mesmo, incapaz de projetar seu futuro. 
     
    Percebi ainda que a dificuldade de se libertar do peso desses tempos de outrora residia, paradoxalmente, no fato de que a memória deixou de lado justamente a história política carioca, ou seja, o estudo de seus principais atores, trajetórias, projetos, bem como a análise dos padrões da cultura política. Para mim, a palavra de ordem foi dar um choque de história na memória do Rio de Janeiro. 
     
    Marly Motta é professora do Curso Intensivo de Pós-Graduação em Administração Pública da Fundação Getulio Vargas (Cipad-FGV).