Memórias de um leque

Maraliz Christo

  • Houve um tempo em que toda mulher tinha seu leque. Além de refrescar, era símbolo de status social. No século XIX, foi-lhe atribuída uma nova função. Tornou-se hábito entre damas europeias enviar a artistas leques ou álbuns em branco, para que neles registrassem testemunhos de apreço.

    Algumas brasileiras adotaram o hábito. Mas nenhuma foi tão bem-sucedida quanto a viscondessa de Cavalcanti (1852-1946). Depois de mais de meio século colecionando assinaturas e desenhos, a elegante senhora viu seu leque transformado em valioso documento histórico. Ele passou pelas mãos dos mais importantes escritores, artistas plásticos, músicos, atores, cientistas e políticos do período – desde fins do século XIX até meados do XX. Lado a lado, deixaram sua marca de Machado de Assis a Getulio Vargas, do romancista francês Alexandre Dumas Filho a D. Pedro II.

    Integrante da aristocracia, amante das artes e considerada uma das mais belas damas da Corte, a carioca Amélia Machado Cavalcanti era casada com Diogo Velho Cavalcanti de Albuquerque, que obteve o título de visconde em 1888, depois de ser deputado geral, senador, presidente de três províncias no Nordeste e ministro de diversas pastas no Império. Portanto, um homem intimamente ligado aos poderes do Império. O casal colecionava obras de arte e convivia com o meio intelectual, abrindo semanalmente as portas de suas residências, no Rio de Janeiro e em Paris, para animados encontros.

    O pouco que se conhece sobre a viscondessa de Cavalcanti não permite saber exatamente como o leque transitou entre todas as 69 personalidades que o assinaram. Muitas frequentaram as reuniões promovidas por ela. Em artigo publicado na revista Ilustração Brasileira de 15 de agosto de 1877, Machado de Assis comentou sobre “as quintas-feiras no palacete do casal Cavalcanti”. O contato entre eles parece ter sido estreito e duradouro, como demonstra uma carta que Machado enviou à viscondessa, em agosto de 1903, parabenizando-a pelos verbetes iniciais do Dicionário Biográfico Brasileiro (ainda hoje inédito, o dicionário permanece entre os manuscritos do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro). Outros que frequentavam os saraus dos Cavalcanti eram o compositor Arthur Napoleão, com quem a viscondessa ousava tocar Beethoven a quatro mãos, e o escritor português Ramalho Ortigão.

    As primeiras assinaturas na peça marcam um importante momento histórico. São da família imperial, após a deposição de D. Pedro II. Terminada a monarquia e proclamada a República, D. Pedro estava em exílio na França, acompanhado por antigos aliados. Em torno da Corte desempossada circulavam políticos, artistas e intelectuais. A fidelidade ao ex-imperador levou o visconde Diogo de Albuquerque a abandonar suas atividades políticas. Em 3 de novembro de 1890, um ano antes de morrer, D. Pedro deixou no leque um testemunho do afeto que nutria pelo casal: “Nada há mais sublime que a amizade. Não envelhece, revigora com a idade”. No início de 1891, também assinaram o leque sua filha, a princesa Isabel, seu genro, o conde d’Eu, e seus netos Pedro, Luís e Antônio.

    Durante aquela década, antes da morte do marido (1899), a viscondessa passara longas temporadas na Europa, aproveitando para obter novas contribuições para o leque no meio artístico local. Algumas mensagens sugerem que nem todas as dedicatórias foram colhidas entre amigos ou convidados do casal, como a do romancista Pierre Loti: “À dama desconhecida, cuja imagem encantadora acabo de ver”.

    As frases expressam admiração pela viscondessa ou manifestações de amizade, tecem breves considerações sobre a existência humana e a natureza feminina, ou são autoapresentações. Alguns de seus autores se inspiravam no próprio objeto: “Ao vir à terra, a mulher perdeu as duas asas... Uma conseguiu, depois, com o leque”, escreveu o historiador Afrânio Peixoto.

    A presença de alguns representantes do ideário moderno, que se espalhava pelo mundo, faz do leque um registro das mudanças da época. O barão de Coubertin – conhecido por ressuscitar, em 1896, os Jogos Olímpicos na era moderna – ensina: “Fiéis lembranças, esperanças tenazes: esta é a melhor receita para o elixir da vida”. Santos Dumont, em 1909, desenha três de suas invenções voadoras, acompanhadas da seguinte frase em francês: “Dirigível, biplano e monoplano. Esta é, cara senhora, a minha família”.

    Entre os autógrafos identificados (quatro deles não permitem descobrir o autor), a maioria é de artistas estrangeiros. Entre os brasileiros, assinam o leque o historiador Oliveira Lima, que publicou o clássico Dom João VI no Brasil em 1908, e o político Joaquim Nabuco. Este, em louvor às mulheres, escreveu: “Helena viverá ainda quando tiverem morrido Aquiles e Homero”. Machado de Assis fez loas à sua costumeira anfitriã: “Neste banquete de Deuses, é de mister que haja alguém que os sirva. Aceito o ofício, Divina Juno”. E os compositores Arthur Napoleão e Carlos Gomes reproduziram trechos de suas partituras mais conhecidas – “Ricordati. Op.66” e “Lo Schiavo”, respectivamente.

    A viscondessa não era, obviamente, a única a colecionar assinaturas nobres. O Museu do Prado guarda um leque pintado pelo paisagista Juan Espina (1848-1933) e autografado por treze importantes poetas espanhóis. O Museu Romântico, também em Madri, exibe o famoso “Abanico autografo”, onde Ramón Cilla (1859-1937) desenha a provável dona do leque ao lado de dez poesias. Mesmo comparado com esses exemplares, o leque brasileiro se destaca pelo número, pela diversidade e pela grande expressão internacional dos nomes presentes.
     
    Ao escolher os pintores e escultores que assinariam seu leque, a viscondessa privilegiara artistas plásticos consagrados nos salões oficiais, requisitados pelo mercado. O que lhe era facilitado por ser uma persistente colecionadora de arte. Foi proprietária de bela pinacoteca, desfeita na velhice, onde se destacavam quadros de Frans Post (1612-1680) e Fragonard (1732-1806), abrangendo gêneros tão variados quanto os presentes no leque.

    Os salões de belas artes constituíam imprescindível oportunidade de encontro entre colecionadores e artistas. A Exposição Universal de 1889, em Paris, tornara-se um momento especial para o casal Cavalcanti, pois o visconde foi comissário-geral da representação brasileira no evento. Não à toa, vários dos artistas presentes no leque lá estavam, como expositores ou jurados: Carolus Duran, Charles Olivier de Penne, Jean Béraud, Jules Worms, Salvador Sanchez-Barbudo Morales, Léon Bonnat. Pintor muito solicitado pela elite francesa, Bonnat retratou o próprio visconde no leque, em 1891. Dois anos antes, já havia feito o retrato a óleo da viscondessa de Cavalcanti, posteriormente doado por ela ao Museu Nacional de Belas Artes.
     
    Vários artistas deixaram no leque detalhes de suas obras – algumas delas, exemplares de um período de intensa experimentação artística. O pintor francês Jean Béraud desenhou uma imagem de Cristo com Madalena aos seus pés, detalhe do quadro “Madalena na casa do fariseu”. A tela, que adapta o Evangelho ao mundo moderno, representando Cristo e Madalena numa sala de jantar burguesa, provocou polêmica ao ser exposta no Salão de Paris de 1891 – mesma época em que o artista fez o desenho no leque da viscondessa. O quadro original encontra-se atualmente no Museu D’Orsay, em Paris.

    Um dos principais artistas de Portugal, Raphael Bordallo Pinheiro, reproduziu sua “Jarra Beethoven” em belo desenho. Encomendada para decorar uma sala de música, a peça em cerâmica media mais de dois metros de altura e tinha fadas, aves e flores esculpidas em alto-relevo. De tão grande, acabou não entrando na sala para a qual era destinada, permanecendo com o artista. Bordallo a expôs no Rio de Janeiro entre 1898 e 1899, período em que a reproduziu no leque. Hoje, a jarra se encontra no Museu Nacional de Belas Artes.

    Os irmãos Bernardelli também estão no leque. O escultor Rodolpho desenhou a cabeça de Jesus, inspirada em seu mármore “Cristo e a mulher adúltera”, esculpido em Roma (1881-1884) e considerado pela crítica e pelo próprio artista sua obra-prima. A peça representa Cristo de forma realista, com base nas características étnicas da população entre a qual Jesus viveu, na atual Palestina, humanizando-o. Rodolpho assinou o leque em 1891, já como diretor da Escola Nacional de Belas Artes e prestes a se tornar o escultor oficial da Primeira República. Henrique Bernardelli, por sua vez, desenhou um personagem do quadro “Os bandeirantes”: um homem deitado, sorvendo água de uma poça. Na tela, o artista representa o bandeirante vencedor como um cão aos pés do índio, que, embora cativo, está ereto e forte. Uma crítica ao extermínio dos indígenas no Brasil.

    A última assinatura do precioso documento coube à própria viscondessa de Cavalcanti, em 4 de dezembro de 1945, ao dedicá-lo ao colecionador Antônio Carlos Simões da Silva (1871-1948). Ela conservou o leque consigo durante 55 anos, até pouco antes de morrer, aos 94 anos, mantendo-o não como peça de uso diário, mas como verdadeiro tesouro.

    Hoje o leque se encontra no Museu Mariano Procópio, em Juiz de Fora (MG). É parte preservada daquele ambiente de transformações que cercara a viscondessa – herdeira das tradições da nobreza e testemunha do nascimento do mundo moderno. 

    Maraliz de Castro Vieira Christo é professora de História da Arte na Universidade Federal de Juiz de Fora.  

    Saiba Mais - Bibliografia:

    PINHO, Wanderley. Salões e Damas do Segundo Reinado. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1942.

    PINTO, Rogério Rezende. “Alfredo Ferreira Lage, suas coleções e a constituição do Museu Mariano Procópio”. Dissertação de mestrado em História, Universidade Federal de Juiz de Fora, 2008.