Meu café por seu estilo

Maurício Silva

  • Quando os primeiros golpes de marreta soaram no pacato quarteirão entre as ruas Marquês de Paranaguá, Caio Prado e Augusta, em 1974, muita gente não acreditou no que ouvia. Vinha abaixo uma das mais icônicas residências paulistanas, uma construção eclética, mas com significativas marcas da estética art nouveau, para a família de Flávio Uchoa. Era o fim de um dos últimos testemunhos arquitetônicos daquela estética na capital.

    Enquanto no Rio de Janeiro, no fim do século XIX e início do século XX, a arquitetura art nouveau se espalhava “democraticamente” por várias construções e espaços – a exemplo do que ocorria em outras capitais do país, como em Belém – em São Paulo ela assumiu o status de manifestação artística vinculada à aristocracia cafeeira. Oriundos de famílias abastadas, os grandes proprietários de terras tinham gosto pelas tendências europeias e apego aos modismos estéticos. Instalados na capital, mandavam construir grandes complexos residenciais, erguidos por ilustres arquitetos estrangeiros – como Vila Penteado, Vila Uchoa, Vila América e Vila Nenê.

    A estética art nouveau desenvolveu-se na Europa durante a chamada Belle Époque – da última década do século XIX até a eclosão da Primeira Guerra Mundial. Exprimia, antes de tudo, um anseio de renovação artística, depois de meio século de predomínio do academicismo burguês. Baseava-se na estilização da natureza, no apego ao ornamento e à decoração, no apreço pelas composições florais aliadas à temática feminina. A principal marca do art noveau, segundo o historiador da arte, o norueguês Stephan Tschudi-Madsen, era a linha ondulada e assimétrica, com sentido de movimento, mas em busca do equilíbrio visual. Muitas vezes sem conseguir livrar-se completamente da tradição acadêmica, o estilo também incorporava elementos neoclássicos, neobarrocos ou neogóticos, além do exotismo oriental.

    No Brasil, como em alguns países latino-americanos, o art nouveau mescla-se, de forma inevitável, à estética local – de natureza colonial, às vezes com exagero formal, além de motivos nativistas locais. No caso de São Paulo, adotaria o tema do café. A capital ainda tinha feições coloniais. A vida social, até então concentrada nas fazendas do interior, começava a ser deslocada para o ambiente efervescente dos centros urbanos, mudança que se acentua com o surto da economia cafeeira, com o desenvolvimento dos meios de transporte e com a presença maciça de imigrantes. Este último aspecto foi decisivo para a arquitetura da cidade, então monopolizada pelo estilo neocolonial de Ramos de Azevedo (1851-1928) e pelo ecletismo dos projetos de pequenos escritórios. Muitos imigrantes (sobretudo italianos) passaram a trabalhar como capomastri (mestres de obras), frentistas, modeladores e artesãos em geral, inserindo às construções traços da arquitetura italiana, como o neoclássico, e mais tarde, sob influência franco-saxã, aspectos da estética art nouveau.

    Uma nascente burguesia urbana era atraída para regiões centrais (Luz, Santa Cecília, Campos Elíseos) e depois para áreas mais altas e “higiênicas” (Higienópolis, Cerqueira César), enquanto na periferia formavam-se os bairros de imigrantes e operários (Barra Funda, Belenzinho, Brás, Bom Retiro). Inspirados, de início, nos boulevards franceses, os novos e elegantes bairros da aristocracia cafeeira contratavam arquitetos estrangeiros que pudessem dar às suas residências um inquestionável status social.

    Dois grandes arquitetos europeus foram marcantes para inserir o art nouveau em São Paulo: o sueco Carlos Ekman (1866-1940) e o francês Victor Dubugras (1868-1933). Carlos Ekman (nascido Karl Wilhelm Ekman) era filho de arquiteto e morou em diversas cidades, incluindo Nova York e Buenos Aires, antes de se mudar em 1894 para a capital paulista, onde viveria definitivamente, tendo inclusive se naturalizado brasileiro. Ekman trouxe à arquitetura dos palacetes brasileiros o hall com pé direito duplo, presente nas duas construções que realizou para o conde Antônio Álvares Penteado, rico cafeicultor e industrial que, ao visitar a Exposição Universal de Paris, em 1900, entusiasmou-se com o estilo art nouveau. Álvares Penteado encomendou a Carlos Ekman o projeto da Escola de Comércio Álvares Penteado (1909) e de sua própria residência, a célebre Vila Penteado (1902), construída no puro estilo da Secessão Vienense (Sezession), como ficara conhecida a estética art nouveau em Viena.

    Mais completo exemplar do art nouveau paulista, a Vila Penteado foi construída num terreno adquirido pela firma de Victor Nothmann e Martinho Burchard, que compraram a antiga chácara do Barão de Ramalho, lotearam-na e formaram um novo bairro (o Boulevard Burchard) em 1898, depois batizado de Higienópolis. Carlos Ekman mesclou estilos distintos, com prevalência do art nouveau, adicionando motivos relacionados à economia cafeicultora, certamente por influência do proprietário. Pinturas de frisos decorativos, principalmente com motivos florais, espalham-se por toda a residência. Há pinturas murais em que sobressaem figuras femininas, e a incorporação de elementos funcionais (maçanetas, grades, fechaduras) ou decorativos (lustres, estatuetas, abajures) inspirados na estética art nouveau, muitos deles importados da Europa. O ecletismo se destaca no saguão de entrada, em imensos quadros acadêmicos de autoria de Oscar Pereira da Silva, professor da Escola de Belas Artes de São Paulo e autor de alguns painéis para o Teatro Municipal da cidade. Em 1948, o prédio foi doado à USP pelos herdeiros de Álvares Penteado, e lá funciona hoje a pós-graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo.

    O outro expoente do art nouveau paulistano, Victor Dubugras, nasceu na França e foi criado em Buenos Aires. Mudou-se para São Paulo em 1891, passando a trabalhar com Ramos de Azevedo, então o mais famoso arquiteto da cidade. Trabalharia ainda no Departamento de Obras Públicas de São Paulo e na Escola Politécnica de São Paulo. Ao longo da carreira, adotou estilos diferentes (neocolonial, neogótico, ecletismo, art nouveau, protomodernismo), tendo sido responsável por dezenas de construções de casas, palacetes, monumentos, edifícios públicos (penitenciárias, escolas, estações de trem) e comerciais, além de projetos não realizados – entre eles, um para o Theatro Municipal do Rio de Janeiro, com expressivas marcas art nouveau. Considerado um dos precursores da arquitetura moderna na América Latina, Dugubras tem entre seus feitos principais a Ladeira da Memória (1919), em São Paulo, a Câmara Municipal e a Cadeia da cidade paulista de Santa Bárbara (1896), a residência de Horácio Sabino (1903) e o palacete do engenheiro Flávio Uchoa (1902), ambos em São Paulo.

    Esta última construção, conhecida como Vila Uchoa, foi uma das mais vistosas e arquitetonicamente avançadas residências do começo do século. Com influências neogóticas em sua fachada, possuía amplo jardim frontal e lateral. O interior tinha diversas marcas art nouveau: decorações em alto relevo nas paredes, pinturas de motivos florais, ornamentos e objetos (como luminárias) na mesma estética. 

    Em 1907, o palacete foi vendido e transformado no conhecido Colégio Des Oiseaux, tradicional escola feminina da elite paulistana, inspirada no Colégio Notre-Dame Des Oiseaux, de Paris, e gerida pelas Cônegas de Santo Agostinho. No local onde se situava o colégio, foi fundado em 1933 o Instituto Superior de Filosofia, Ciências e Letras Sedes Sapientiae, que em 1971 seria incorporado pela PUC de São Paulo. Antes disso, contudo, ainda na década de 60, o colégio foi desativado (1969) e, anos depois, demolido (1974), restando apenas o bosque que o circundava. No lugar daquela que foi uma das mais vistosas construções art nouveau da cidade de São Paulo, avista-se hoje um precário estacionamento. Em 2004, o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp) tombou o que restava: um conjunto de espécies arbóreas do bosque; edificações em ruínas que compunham o antigo colégio; e a velha e suntuosa portaria que, embora degradada, ainda se mantém, imponente, como memória de um esplendoroso e distante passado.

    Maurício Pedro da Silva é professor da Universidade Nove de Julho e autor da tese “O sorriso da sociedade: Literatura e academicismo no Rio de Janeiro da virada do século” (USP, 2011).

    Saiba Mais

    BARILLI, Renato. Art Nouveau. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
    REIS FILHO, Nestor Goulart. Victor Dubugras: precursor da arquitetura moderna na América Latina. São Paulo: Edusp, 2005.
    TOLEDO, Benedito Lima de. São Paulo: três cidades em um século. São Paulo: Duas Cidades, 1981.
    UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO/ FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO. Vila Penteado: 100 Anos. São Paulo: FAUUSP, 2002.