Costuma-se dizer no Brasil que a vontade e as esperanças do povo precisam se refletir nas urnas. Pode ser, mas às vésperas das eleições, Michael Sandel, professor da Universidade Harvard, uma das mais prestigiadas do mundo, avisa que cidadania é muito mais do que votar: segundo ele, ser cidadão “significa, sobretudo, se engajar em debates públicos sobre as grandes questões que definem os rumos de uma sociedade”.
Produzir grandes debates públicos tem sido a principal atividade de Sandel. Formado em filosofia pela Universidade de Oxford, na Inglaterra, o professor norte-americano ficou famoso no mundo todo depois do seu curso, “Justiça”, ser disponibilizado integralmente no YouTube. Como se não bastassem os mais de 15 mil alunos que assistiram presencialmente às aulas, seus vídeos contam hoje com milhões de visualizações. Neles, o filósofo convida os alunos a participarem de um grande debate acerca de dilemas éticos e morais, associando exemplos concretos contemporâneos às reflexões feitas por grandes pensadores. Afinal, como lembra o professor, “essas ideias que os grandes filósofos do passado pensaram permanecem presentes nos debates que temos todos os dias”.Em visita ao Brasil, Sandel recebeu a equipe da Revista de História onde estava hospedado no Rio de Janeiro e conversou sobre o papel de intelectual público, sobre os protestos que se espalharam pelo mundo todo, incluindo no Brasil em 2013, e o perigoso crescimento da mercantilização de quase todas as esferas da vida: “saímos de uma economia de mercado para nos tornarmos sociedades de mercado”, diz o filósofo.Revista de História – Seu curso e seu trabalho têm girado bastante em torno da ideia de justiça, mas fala pouco sobre direitos humanos, algo que era mais frequente até os anos 90. Por quê?Michael Sandel – Bem, eu acho que o assunto direitos humanos é brevemente discutido tanto no livro quanto nas aulas sobre justiça, que você mencionou. Mas eles aparecem, especialmente, na discussão que faço sobre Kant, sobretudo acerca do que ele fala sobre autonomia. Se observarmos com atenção, perceberemos que a fonte moral da filosofia dos direitos humanos é mesmo Kant. Eu penso que o argumento dele contra o utilitarismo, contra a defesa que os utilitaristas faziam sobre a primazia da maximização da felicidade e do bem-estar é fundamental. Ele dizia que a moralidade não pode ser baseada apenas em elementos empíricos, em fatores como interesses, vontades e desejos, que são variáveis e contingentes. Ao invés disso, Kant fundamentava a moralidade através de nossa capacidade de raciocínio e liberdade. Acho que são esses argumentos, que implicam no seu conceito de autonomia, que proveem as fundações filosóficas do que hoje chamamos de direitos humanos.RH – Mas o senhor pouco fala do risco ou da possibilidade do uso político ou ideológico dos direitos humanos.MS – Você se refere às contradições entre princípios e práticas?RH – Naturalmente, mas também ao surgimento dos direitos humanos como princípio político nos anos 1970, como afirma o historiador Samuel Moyn.MS – Ah, sim! Muito interessante! Eu estou numa mesma comissão das Nações Unidas com Samuel Moyn, sobre o monitoramento das questões dos direitos humanos hoje. Mas confesso que talvez você tenha razão. Não tinha pensado nisso, é um ponto interessante. Se eu entendi bem, isto significa dizer que o discurso dos direitos humanos, quando vinculado pelas agências da ONU, diplomatas e políticos, flutua, paira no ar sobre a sociedade. Quer dizer, não a toca. Eu acho que é verdade. Existe aí uma contradição. É claro que sou a favor dos direitos humanos, mas pensando em termos de discurso, eu acho este um bom argumento. Nunca pensei muito nesses termos, talvez por que isso me pareça uma questão mais sociológica do que filosófica.RH – Como intelectual, o seu trabalho parece bastante dedicado a trazer filosofia para o dia a dia.MS – Sem dúvida! Esta sempre foi uma preocupação minha, pensar a filosofia como algo que informa a vida pública. Nas minhas aulas eu convido os alunos a responderem questões ao invés de apenas assistirem passivamente. Faz parte da minha aula, que é de livre entrada, promover o debate estimulando raciocinar e discutir em conjunto sobre as grandes questões éticas e morais. Eu ensino filosofia política, uma matéria relativamente abstrata, o que permite que eles possam se posicionar diante de dilemas em grandes debates filosóficos a partir de questões contemporâneas e exemplos bastante concretos. Mas, para ser sincero, no começo eu nem me interessava muito por filosofia política.RH – E como surgiu esse interesse?MS – Eu gostava de grandes argumentos políticos, acho que meu interesse em filosofia veio justamente por assistir a debates políticos, incluindo debates sobre ética e valores. De qualquer forma, quando me graduei, não sabia o que queria fazer. Pensei em trabalhar com direito, ou ser jornalista político. Eu adorava política, acompanhava muito os jornais. Pensei também que talvez pudesse entrar para política, quem sabe concorrer a algum cargo. Foi quando tive a oportunidade de passar um tempo na Inglaterra. Lá, decidi ler a história do pensamento político para ganhar uma base e pensar no que eu realmente queria fazer. Terminei capturado e desde então não saí mais. Acabei como professor justamente de filosofia política. Mas acho que talvez esse caminho explique porque eu sempre quis ligar a filosofia ao mundo.RH – Isso parece ainda mais claro nos seus livros.MS – Fico feliz que eles sejam vistos assim. Porque os escrevi justamente procurando tornar a filosofia acessível para um grande público, isto é, não apenas para leitores da academia. Além disso, temas como justiça, o lugar do mercado na nossa vida ou os limites da engenharia genética são amplos e dizem respeito a diferentes sociedades, não apenas à americana. E, se pensarmos no fortalecimento da sociedade civil, não faz sentido ficarmos restritos à esfera dos especialistas. Em termos práticos, isso representa o esforço de tentar trazer para o dia a dia reflexões de autores que, muitas vezes, nos parecem distantes no tempo.RH – E como fazer isso?MS – Bom, em Justiça e O que o dinheiro não compra, eu lido com filósofos do passado, mas sempre procurando ilustrar seus argumentos com histórias concretas e exemplos que englobam desde a política contemporânea às leis e o nosso dia a dia. Algo que faço também bastante no curso. Eu tento mostrar aos leitores que essas ideias que os grandes filósofos do passado pensaram permanecem presentes nos debates que temos todos os dias, mesmo que, muitas vezes, não façamos referência a eles quando pensamos e debatemos.RH – O resultado parece bastante didático.MS – E é. Falar ou escrever com essa preocupação tem o objetivo de fazer com que os estudantes se sintam próximos, se engajem no estudo desses pensadores e percebam que o que eles acreditam pode estar certo ou errado, se pensado em termos do que esses filósofos tentaram dizer. Mas o que importa é convidar leitores e alunos a participarem com seus próprios pontos de vista a respeito do que é moralmente correto ou aceitável hoje, fazendo com que percebam que os dilemas que confrontam todos os dias, tanto na vida pública quanto na privada, se encontram, ainda que implicitamente, nas ideias que muitos desses filósofos pensaram.RH – Trabalhar com um conceito amplo como justiça obriga-o a uma abordagem multidisciplinar. Isso é importante para o senhor?MS – Sem dúvida. Ao falar de justiça, é muito difícil separar história da sociologia, direito ou economia. Talvez eu possa ilustrar com um exemplo de um livro. Um dos maiores temas de O que o dinheiro não compra é mostrar que a forma que pensamos economia hoje é bastante obtusa e inadequada. Muitos ortodoxos acreditam que a economia é uma ciência neutra e exata. Eu acho isso um grande equívoco. Através de vários exemplos eu tento mostrar que economia é inseparável da filosofia moral e política. Na verdade, se você analisar os textos e os autores clássicos de economia, como Adam Smith, será possível perceber que eles consideravam a economia não como uma ciência neutra e independente, mas como um subcampo da filosofia moral e política. O interessante hoje é tentar trazer de volta essa reflexão ao entendimento econômico.RH – Este é um argumento delicado, especialmente nos Estados Unidos, não?MS – Ah, sim (risos), você deve imaginar que os economistas de livre mercado ortodoxos naturalmente discordam de mim. Muitos deles afirmam que o mercado é inerte, não afeta os bens que neles circulam. Eu penso o oposto. Acho que são os valores de mercado os responsáveis por descartar princípios que regem a vida cívica. Mas não vejo problema, acho que essa discordância faz parte do debate, e é positiva. Encorajar essa discussão é algo que me agrada fazer. Especialmente quando essa discussão não fica apenas restrita à academia, já que me parece que debater sobre o lugar da economia e do mercado na vida pública é, ou pelo menos deveria ser, de interesse de todos. Esta é outra meta que eu tenho: mostrar que, sem que percebêssemos, saímos de uma economia de mercado para nos tornarmos sociedades de mercado.RH – E qual a diferença?MS – Bom, a diferença é enorme. A economia de mercado é uma ferramenta útil e valiosa na organização da atividade produtiva. Não tenho nenhum problema com ela. Mas quando o mercado assume um papel maior, isto é, quando a própria sociedade se torna de mercado, ela passa a ser um lugar onde tudo, aparentemente, está à venda. Um modo de vida no qual os valores e as lógicas de mercado atingem cada vez mais todas as esferas da vida para além do domínio dos bens materiais. Falo de esferas como a vida familiar e as relações pessoais, educação, política, direitos, vida cívica... Acho que deveríamos dar um passo para trás, refletir e ter um debate público sobre os limites que determinam até que ponto o mercado obedece ao interesse público e quais são os principais aspectos que não lhe cabem.RH – É provável que esse debate seja alimentado hoje pelo crescimento da desigualdade em países como os Estados Unidos.MS – É verdade, mas eu acho que ainda não tratamos suficientemente desta questão no nosso debate público, embora estejamos começando a observar um crescimento no interesse. Além de a desigualdade ser um tema vital dentro do conceito de justiça, temos duas outras razões para nos preocuparmos com ela. Uma é a distribuição de renda, que cria corretamente a obrigação do Estado de prover acesso às necessidades mais básicas de uma vida digna a quem não tem condições. Mas há uma razão mais profunda para se preocupar com a desigualdade, e algo que muito raramente discutimos nos Estados Unidos, que é o efeito do grande abismo entre ricos e pobres na ideia de comunidade. Esse fenômeno de as elites quererem se destacar do resto, esse aspecto pouco saudável de setorização dos VIPs e segregação de áreas antes públicas, tem um enorme impacto em algo precioso em democracias, que é a percepção de que estamos juntos.RH – Talvez isso tenha a ver com seu argumento sobre sociedade de mercado.MS – Exato. Acho que há uma grande ligação entre o aumento da desigualdade nas últimas décadas, o crescimento do papel do mercado, e o fato de que ele põe um preço em cada aspecto da vida. Se o dinheiro apenas comprasse acesso a bens e artigos de luxo, como viagens e carros BMW, a desigualdade não importaria tanto. Mas como o dinheiro compra cada vez mais qualquer coisa, a desigualdade importa mais. E esta vem sendo uma tendência nas últimas três décadas. O crescimento da desigualdade e o da mercantilização da vida social, juntos, têm produzido o efeito de dividir a sociedade. Os mais pobres e os mais ricos vivem vidas cada vez mais separadas. Há cada vez menos espaços comuns, espaços públicos que reúnem pessoas de diferentes classes, e isso é extremamente corrosivo para a ideia de comunidade e cidadania. Este é o aspecto de desigualdade que temos que enfrentar diretamente no debate público.RH – Mas como enfrentar isso numa sociedade, como a norte-americana, na qual não há limites para o financiamento privado de campanhas políticas?MS – Não é fácil, e eu admito que o dinheiro tem uma enorme influência na política pública americana. Isso ficou ainda mais complicado depois de a Suprema Corte derrubar as leis que propunham limitar as doações a campanhas. Claro que o resultado disso é o livre financiamento promovendo interesses específicos, o que do ponto de vista da política é um desastre.RH – E qual o impacto desse processo de mercantilização na mídia?MS – É preciso lembrar que a mídia, em grande parte, é gestada por grandes corporações que, como tal, precisam gerar lucro. Isso vale tanto para jornais quanto para emissoras de televisão. Não surpreende que ambos tenham enfatizado, cada vez mais, entretenimento e coberturas sensacionalistas. Bom, este é um problema. O outro problema é a tendência da televisão a cabo e de uma mídia digital. Em grande parte, a cobertura jornalística que fazem é motivada exclusivamente por uma abordagem que reforça suas próprias posições. Há cada vez menos opções dedicadas a informar com uma perspectiva mais ampla. Eles seguem, cada um, sua agenda.RH – O senhor reconhece algo em comum entre os diferentes protestos que explodiram no mundo inteiro depois da crise de 2008?MS – A tendência em comum que eu vejo nas democracias pelo mundo é uma profunda frustração com a política, políticos e os partidos existentes. Eu acho que a fonte dessa frustração é a percepção de que o discurso público hoje é oco, isto é, vazio de um sentido moral mais amplo. As pessoas querem que a política almeje e discuta grandes coisas, que suas promessas e discursos incluam grandes questões sobre ética e valores. Obviamente, hoje os discursos públicos existentes não proveem isso. Muito pelo contrário. Eles são dominados por questões meramente tecnocráticas que, obviamente, não inspiram ninguém. O resultado é essa distância entre partidos políticos e debate público. Eu acho que os protestos são a demonstração dessa frustração. Essa sensação de que a voz das pessoas não está sendo ouvida e que os partidos políticos existentes não estão de fato se dedicando às questões que realmente importam resultam nessa explosão difusa. Eu vejo isso em vários lugares no mundo, e me parece ser esse também o caso no Brasil.RH – Se a frustração com a política permanece, por que esses protestos diminuem?MS – Não é fácil manter essas manifestações com o mesmo entusiasmo por muito tempo. O desafio é dar alguma estrutura institucional para que a energia dos protestos tenha alguma influência duradoura no debate público e no sistema político. O movimento Occupy [Wall Street] não conseguiu fazer isso. Eles não tiveram liderança, estrutura, não fizeram pontes com partidos políticos nem inventaram um próprio. Em outras palavras, não criaram qualquer estrutura para que continuasse existindo. Outros movimentos conseguiram ser mais bem sucedidos nesta questão justamente por terem criado novas bases. O movimento Tea Party, por exemplo, conseguiu permanecer no centro do debate político americano porque se manteve ligado a um partido político, o Republicano, onde conseguiram ter uma voz ativa. Portanto, há várias formas de se fazer isso. Uma é estabelecer relações com um partido, outra é criar um novo. A terceira, menos frequente, é criar uma estrutura para um movimento dentro da sociedade civil visando ter uma influência persistente e voz. E se isso vai acontecer no Brasil, ou não, vocês certamente sabem dizer melhor do que eu.RH – O senhor vê alguma relação entre essa frustração com a política e o crescimento da extrema direita?MS – Sim. Eu acho que o que nós estamos vendo nesse crescimento de partidos populistas de extrema direita na Europa reflete essa frustração de que estávamos falando. E, portanto, você vê sinais dessa frustração tanto na direita quanto na esquerda. Mas, mais uma vez, é importante enfatizar que o sucesso desses partidos se deve ao fracasso dos partidos políticos tradicionais em lidar com as questões mais relevantes do debate público.RH – Depois do sucesso do seu curso, o senhor tem viajado o mundo inteiro para falar de justiça. Como tem sido?MS – Tem sido uma experiência fascinante. Quando eu escrevi esses livros e colocamos o curso on-line, eu nunca imaginei que milhões de pessoas se interessariam por livros e aulas de filosofia dessa maneira. Fiquei muito surpreso. Isso me deu a oportunidade de viajar por muitos países pelo mundo e entrar em discussões públicas não apenas com estudantes, mas também com um público mais amplo. O que mais me chamou a atenção foi o tremendo interesse em aprender, em participar de discussões sérias sobre grandes questões relativas à ética, a valores, justiça e o bem comum. E eu acho que há esse interesse porque o debate público, em diferentes sociedades pelo mundo, não tem de fato refletido os interesses fundamentais da sociedade. De um modo geral, as instituições não estão respondendo a essa demanda. Esta é a única forma com que consigo explicar a paixão que encontro entre públicos pelo mundo, especialmente em plateias mais jovens. Eu acho que existe um desejo de tornar pública a discussão sobre grandes questões ou, em outras palavras, de tornar esse debate mais significativo, mostrando que há mais questões morais e espirituais a serem relacionadas aos dilemas que enfrentamos como cidadãos de democracias.RH – Inspirar a formação de intelectuais públicos é uma meta sua?MS – Bom, eu diria que uma das minhas metas é tentar desafiar, encorajar, revigorar e promover o diálogo público sobre grandes questões, como justiça, o bem comum e o que significa ser cidadão. É fundamental reforçar essa discussão e incentivar as pessoas a levarem a sério algo tão importante como cidadania. Está claro hoje que isto significa muito mais do que apenas votar. Significa, sobretudo, se engajar em debates públicos sobre as grandes questões que definem os rumos de uma sociedade.Verbetes:Samuel Moyn: Historiador e professor da Universidade de Columbia. Entre suas obras, destacam-se Human Rights and the Uses of History (2014) e The Last Utopia: Human Rights in Histor, ambos ainda sem tradução para o português.Occupy Wall Street: Movimento político iniciado em 2011 no distrito financeiro de NovaYork. Embora de natureza difusa, o protesto, acampado no Zuccotti Park, voltava-se contra a corrupção e a desigualdade econômica e social.Immanuel Kant (1724-1804): Filósofo prussiano responsável pelos conceitos que estruturam a experiência do homem e sua razão, como fonte para a moralidade. Veja artigo no site da Revista de História: http://rhbn.com.br/secao/capa/kant-e-as-armadilhas-do-tempoUtilitarismo: Doutrina ética, defendida por pensadores como Jeremy Bentham e John Stuart Mill, que afirma serem boas ações aquelas que maximizam a felicidade e o bem geral.Adam Smith (1723-1790): Filósofo e figura central do Iluminismo escocês. É autor de A Riqueza das Nações (1776), clássico do liberalismo, no qual analisa o funcionamento das sociedades comerciais e os problemas relativos à distribuição de renda e à acumulação de capital.Tea Party: Movimento político surgido em 2009 nos Estados Unidos. De cunho conservador, é conhecido por defender a redução dos gastos do governo federal e o retorno a uma mensagem original da Constituição.
Michael Sandel
Bruno Garcia