Nas quatro primeiras décadas do século XX, negros vindos da Bahia e da região cafeeira do Estado do Rio e judeus do Leste Europeu dividiam ruas, escolas e até casas no bairro Praça Onze, que abrangia dezenas de ruas do Centro do Rio de Janeiro. Os dois grupos tinham muito em comum: um passado recente traumático – escravidão para os negros e perseguições religiosas para os judeus – e religiões malvistas pela sociedade.
Sem profissões definidas, eles tentaram se adaptar à nova terra trabalhando nas ruas, vendendo mercadorias, produzindo boa música, boa comida, e exibindo um humor refinado. Para negros e judeus, a Praça Onze era ponto de referência, mas os dois grupos a ocupavam de maneiras distintas. Enquanto os negros mantinham instituições informais, sem sedes ou estatutos, os judeus criavam jornais, clubes, sinagogas e escolas. Sua vocação para a política formal e, muitas vezes, de oposição, era explícita, a se julgar pela quantidade de membros da comunidade filiados a correntes políticas brasileiras ou europeias. Os negros, embora organizados na festa, na religião e na solidariedade, não quiseram ou não puderam integrar partidos ou criá-los.
Em 1942, o bairro foi demolido para que a Avenida Presidente Vargas pudesse passar, mas entrou para a mitologia carioca como o berço das manifestações mais brasileiras: o samba, o choro, o carnaval. Muito se fala da Praça Onze em sambas clássicos e textos acadêmicos. Negros e judeus contam sua história, mas uns não falam dos outros quando reconstituem esse passado. “Como se um grupo fosse invisível para o outro”, comenta o escritor Sérgio Cabral. No entanto, há fotografias de judeus nos blocos de carnaval e relatos de negros fluentes em iídiche.
Pelo menos um personagem passou de uma cultura a outra e ganhou o mundo. O líder judaico e memorialista Samuel Malamud (1908-2000), em Recordando a Praça Onze, e o compositor e escritor Nei Lopes, na Enciclopédia Brasileira da Diáspora Negra, citam o Dr. Jacarandá, como era conhecido Manuel Vicente Alves Palmeira, negro alagoano que chegou ao Rio com 21 anos, em 1904. Tornou-se rábula, e circulava pela Praça Onze advogando para aquela população desassistida pelo poder público. Ele é tido como o inspirador do Zé Carioca, o brasileiro típico criado pelo judeu norte-americano Walt Disney (1901-1966) para o filme “Alô, Amigos!”. Não há registros de uma ida do animador à Praça Onze, mas o produtor hollywoodiano Hal Roach (1892-1992) – dos filmes de O Gordo e o Magro – esteve lá nos anos 1930 e saiu prometendo colocar aquele cenário em suas produções cinematográficas.
A ideia de Roach reflete o humor de judeus e de negros. Autorreferentes, implacáveis – mas não grosseiros – e antiautoritários, eles são capazes de zombar de todos, “inclusive de Deus”, como afirma a jornalista e historiadora Helena Salém. Embora houvesse a barreira da língua (o iídiche com sotaques diversos e o português influenciado pelos dialetos africanos), é improvável que não fizessem piadas, e que a segunda geração dos dois grupos, educada em português, não trocasse zombarias.
Mas é patente a falta de um marco judeu na atual Praça Onze, onde, além do Sambódromo, a cultura negra é lembrada pelo monumento a Zumbi dos Palmares e pela Escola Municipal Tia Ciata, em homenagem à mãe de santo que abrigava as primeiras rodas de samba da cidade. Talvez por terem permanecido na região, os afro-descendentes consideram o bairro como um local de seu passado, reivindicação incentivada pelo poder público. Se recordamos o passado em função do que vivemos no presente, que fatos de hoje empurram o relacionamento entre judeus e negros para o esquecimento? E que sentimentos e acontecimentos levaram os dois grupos a não falarem um sobre o outro durante quase 70 anos, desde a demolição da Praça Onze?
Além da construção da Av. Presidente Vargas nos anos 1940, outra grande obra do século XX dificultou a localização do bairro e mudou radicalmente a sua paisagem: a construção da linha do metrô, nos anos 1980. Felizmente, o Rio de Janeiro é uma das cidades mais fotografadas do mundo, e sobraram imagens da antiga configuração da área. A praça, cujo nome homenageia a vitória brasileira na Batalha do Riachuelo, em 11 de junho de 1865, ficava à esquerda da entrada do Sambódromo e ia até o Canal do Mangue, que divide a Presidente Vargas em duas pistas. Em volta dela, as ruas tinham traçado regular, e as mais movimentadas, Senador Eusébio e Visconde de Itaúna, paralelas ao Canal do Mangue, desapareceram com o surgimento da avenida.
A região foi povoada por famílias burguesas que, no fim do século XIX, se mudaram para a orla da Baía de Guanabara e alugaram seus palacetes para os imigrantes pobres que chegavam ao Rio em grande quantidade. Segundo o Censo de 1906, 200 mil pessoas moravam lá, amontoadas em cortiços e casebres, às vezes com oficinas no térreo. O “bota-abaixo” dos primeiros decênios do século XX, que expulsou as populações pobres do Centro do Rio, não atingiu o bairro, talvez porque os proprietários dos cortiços tenham se recusado a ficar sem a renda dos aluguéis, ou devido à resistência dos moradores, que já haviam feito do bairro o palco das festas populares, como o carnaval e o Natal.
Com muitos bares e restaurantes, a praça tinha uma vida boêmia intensa. E ainda hospedava a zona de meretrício, onde se apresentavam músicos já consagrados, como Sinhô (1888-1930), ou que se consagrariam depois, como Benedito Lacerda (1903-1958) e Luiz Gonzaga (1912-1989). Tanto nos clubes judeus como nas casas dos negros, havia festas em profusão. As cerimônias religiosas dos descendentes de africanos eram seguidas de batuques. Nas rodas de samba e de choro, gêneros que haviam acabado de nascer, os músicos cariocas – nativos, como Cartola (1908-1980), ou de adoção, como o mineiro Geraldo Pereira (1918-1955) – apresentavam novas composições. No carnaval, a cada noite, 40 mil pessoas se espremiam na praça, multidão comparável à que vai ao Sambódromo. Era lá que desfilavam, até os anos 1930, as primeiras escolas de samba, como a Deixa Falar, do Estácio, a Estação Primeira de Mangueira e a Portela.
Os judeus tinham cerca de cinco jornais e um número parecido de clubes. “Os imigrantes solteiros e os que estavam sem família ficavam na Praça Onze até altas horas. Após o fechamento do comércio, faziam suas refeições no bairro. Na Praça Onze e nas proximidades, várias pensões forneciam refeições judaicas”, conta Samuel Malamud. Artistas da classe média, como Noel Rosa (1910-1937), Braguinha (1907-2006) e até o bem-nascido Mário Reis (1907-1981) – advogado e um dos donos da Fábrica de Tecidos Bangu – costumavam dizer que a música que encantava seus públicos vinha da Praça Onze.
Apesar de importante, a praça não foi poupada na reforma urbana promovida nos anos 1940 pelo prefeito Henrique Dodsworth (1895-1975), que deu origem à Avenida Presidente Vargas, bulevar que vai da Igreja da Candelária à Praça da Bandeira. A ideia de rasgar a cidade com uma larga avenida ladeada de prédios altos é atribuída ao suíço Le Corbusier (1887-1965), mentor da arquitetura moderna brasileira. Foram derrubados os imóveis de dois e três pisos, característicos da Praça Onze, mas a avenida idealizada não vingou, e até hoje a Presidente Vargas tem vastas áreas desocupadas.
A historiadora e arquiteta Fânia Fridman também atribui a demolição à necessidade que o governo brasileiro, simpatizante das ideologias antissemitas dos anos 1930 e 1940, tinha de conter os judeus que lá se refugiaram e que combatiam o governo em seus jornais, suas associações e seus clubes, como forma de autodefesa. Levando em conta o que dizia Samuel Malamud, a manobra deu certo, pois a comunidade judaica estava “integrada ao meio ambiente do país” e não reinavam mais “a dinâmica e o fervor dos idos anos da Praça Onze”. Aparentemente, os judeus saíram de lá sem reclamar.
Os negros, não. Os protestos vieram antes, no carnaval de 1941, com a marcha “Praça Onze”, de Herivelto Martins (1912-1992) e Grande Otelo (1915-1993), que lamentava o fim do logradouro e fez enorme sucesso: “Vão acabar com a Praça Onze/
Não vai haver mais Escola de Samba...”. O tempo aumentou o sentimento pela perda do bairro. Um dos hits de 1965, ano do quarto centenário da cidade do Rio de Janeiro, foi o “Rancho da Praça Onze”, de João Roberto Kelly e Chico Anysio. Nas décadas seguintes, a praça virou símbolo da resistência cultural dos negros, dita imortal no samba-enredo “Bumbumpaticundumprugurundum”, que deu a vitória no carnaval de 1982 ao Império Serrano.
Nos anos 1980, a sede administrativa da prefeitura foi para lá, e é chamada de Piranhão até pelas autoridades municipais – uma herança da picardia de outros tempos. Atualmente, a região abriga prédios residenciais e comerciais recentes, como a sede da Empresa Brasileira de Correios e o Teleporto. Há também áreas de entretenimento, como o Sambódromo e o Terreirão de Samba, que só são usadas na época do carnaval, para shows e por alguns raros circos, o que demonstra que a Praça Onze ainda não voltou a ser ocupada como nos tempos do Dr. Jacarandá.
Beatriz Coelho Silva é jornalista e autora de Palácio das Laranjeiras (Topbooks, 2008) e Wagner Tiso. Som, Imagem, Ação (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo).
Saiba Mais
FRIDMAN, Fânia. Paisagem Estrangeira. Memórias de um Bairro Judeu no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2007.
MALAMUD, Samuel. Recordando a Praça Onze. Rio de Janeiro: Kosmos, 1988.
MOURA, Roberto. Tia Ciata e a Pequena África do Rio de Janeiro. Coleção Carioca, volume 32. Rio de Janeiro: Prefeitura do Rio, 1995.
VELLOSO, Mônica P. “As Tias Baianas tomam conta do pedaço. Espaço e Identidade Cultural no Rio de Janeiro”. Revista Estudos Históricos, volume 3, número 6. Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, 1990. p. 207-228.
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Beatriz Coelho Silva