Modelo candango

Andréa Cristina Silva

  • O Ano da França no Brasil já está terminando, mas, em breve, o nome de um francês ligado ao nosso país estará novamente em evidência. Daqui a cinco meses, no dia 21 de abril de 2010, comemoram-se os 50 anos da inauguração de Brasília, cidade que teve no fotógrafo parisiense Marcel Gautherot um de seus primeiros cronistas. Seguindo uma tradição de franceses interessados em retratar a cultura e os costumes brasileiros, ele registrou as duas faces do nascimento da capital federal.  

    Se as fotografias de Marc Ferrez (1843-1923) se tornaram uma das principais fontes de informação sobre como se vivia no Rio de Janeiro no século XIX, fotógrafos como Gautherot, Pierre Verger (1902-1996) e Jean Manzon (1915-1990) fizeram o mesmo pelo século XX em diversas regiões do Brasil.

    No caso de Gautherot, mais de 25 mil fotogramas registram o país, de São Paulo ao Amapá. No Planalto Central, o fotógrafo, nascido em 1910 e que se mudou para o Rio em 1939, uniu o talento para clicar as obras de Oscar Niemeyer ao olhar atento à realidade do povo brasileiro. Dessa forma, fotografou a construção do Congresso Nacional e de tantos marcos do modernismo, mas também da Sacolândia – favela feita com os sacos do cimento usado na construção do plano piloto.

    A decisão de visitar o Brasil foi tomada por Gautherot quando ele leu Jubiabá, de Jorge Amado (1912-2001). Este romance, escrito em 1935, conta a trajetória de Antônio Balduíno, que nasce num bairro pobre de Salvador e leva uma vida de malandro até se tornar um importante líder trabalhista. A maior parte das personagens do romance retrata o povo pobre da Bahia: operários, trabalhadores do cais, padeiros e marinheiros que se unem a Balduíno em sua luta proletária. É o arquétipo do brasileiro presente em Jubiabá que encanta o fotógrafo francês.

    Já instalado no Brasil, Gautherot se dedicou a registrar manifestações culturais e costumes populares, como o bumba meu boi do Maranhão e os Guerreiros de Alagoas. Ao mesmo tempo, especializou-se em fotografar imagens do patrimônio histórico para o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), antecessor do Iphan. Suas fotos se tornaram referência para as revistas especializadas, inclusive estrangeiras, que abordam a arquitetura moderna brasileira. Com seu trabalho de fotógrafo, Gautherot uniu duas de suas paixões: a arquitetura – curso que chegou a iniciar em sua Paris natal, mas não terminou – e as viagens.

    No início dos anos 1940, o Sphan tinha entre seus diretores o então jovem arquiteto Oscar Niemeyer e o urbanista Lúcio Costa (1902-1998). Ambos se tornaram admiradores do trabalho de Gautherot em 1945, quando o francês fotografou a construção do complexo da Pampulha, em Belo Horizonte, a primeira obra moderna a ser tombada como patrimônio histórico. Ali nasceram uma amizade e uma parceria. Gautherot seria, por muitos anos, o fotógrafo preferido de Niemeyer, sendo considerado por Lúcio Costa o mais “artista” de todos os fotógrafos.

    Essa também era a opinião de Augusto da Silva Telles, historiador da arquitetura brasileira. Para ele, as fotos de Gautherot, “embora fossem peças documentais, apresentavam-se como algo a mais: a leitura da arquitetura e da escultura, feita pelo ângulo mais favorável à perfeita compreensão do edifício ou objeto artístico. Assim também a visão do objeto, do edifício, era valorizada por sua melhor integração na paisagem”.

    O convite para registrar a construção de Brasília, em 1956, partiu de Oscar Niemeyer. Foi necessário que Gautherot fizesse várias viagens ao Planalto Central, o que fica evidente pelo grande número de fotos realizadas. Quase três mil dessas imagens estão disponíveis para consulta pública no Rio de Janeiro, no Instituto Moreira Salles, que adquiriu em 1999 a coleção fotográfica de Gautherot, que morreu em 1996. Trezentas dessas fotos se encontram disponíveis on-line no site da instituição.

    Na então nova capital federal, Gautherot se firmou como um dos principais especialistas em retratar a arquitetura de Niemeyer. Registrou também o cotidiano do povo que vivia em condições precárias nos acampamentos improvisados pelos trabalhadores, como na Sacolândia e na Cidade Livre – hoje chamada de Núcleo Bandeirante, uma das primeiras cidades-satélites de Brasília.

    Com seu passado de estudante de arquitetura, Gautherot era fascinado pela construção popular. Ele considerava uma “beleza de iniciativa e inteligência” a criatividade dos “candangos”. No conjunto das imagens dedicadas à arquitetura popular, percebem-se os barracos, a casa do trabalhador, sempre construídos com os restos da grande obra. O resultado é uma bricolagem de materiais: madeira, ripas de madeira, sacos de cimento, latas velhas, caixotes.

    O construtor não escolhe os materiais, apenas utiliza o que há disponível, como quase sempre ocorre na arquitetura popular. A paisagem parece comungar com o ambiente precário e com os poucos utensílios domésticos. Nesse pequeno ensaio, o foco está nos trabalhadores e em suas mulheres e crianças, acampados ao redor da cidade.

    A maneira como Gautherot retrata esses mesmos operários trabalhando na construção mostra a influência de Jorge Amado sobre seu ofício de fotógrafo. Nas fotos dos canteiros de obras, o francês quase sempre sugere a importância do trabalho realizado em conjunto. Diversos homens, num mesmo gesto, compõem os vários gestos de um homem só: o brasileiro que constrói a cidade planejada para ser a capital do país. Esses homens são como Antônio Balduíno. A força mestiça do povo que Jorge Amado usou como matéria-prima para nos mostrar a Bahia agora constrói Brasília, um símbolo da nação.

    Nas primeiras imagens do plano piloto, o que mais se vê é chão e céu. Terra e nuvens de poeira são mais visíveis do que a própria arquitetura. Nessas imagens, quase não é possível perceber a presença dos homens, que mais parecem formiguinhas. São imagens cheias de silêncios e vazios, que tentam traduzir a árdua empreitada que estava por vir. Aos poucos, vê-se a edificação dos monumentos e palácios. Somos levados a erguer a cidade e a perceber como as construções se apoderam do cerrado.

    Outros fotógrafos, como o piauiense Mário Fontenelle (1919-1986) e o húngaro naturalizado brasileiro Thomaz Farkas, também registraram o nascimento de Brasília, mas um dos diferenciais de Gautherot foi a forma como captou a relação entre a arquitetura de Niemeyer e o espaço do Planalto Central. Imprimir a luz de Brasília foi um desafio para todos esses fotógrafos, que correram o risco de ter em suas imagens um céu lavado, de poucos contrastes.

    O completo domínio de todo o processo fotográfico foi decisivo na qualidade de suas imagens: Gautherot era um excelente laboratorista, o que contribui para que atingisse um alto grau de qualidade em se tratando de fotografias em preto e branco.

    Um exemplo é a série de fotos sobre a construção das cúpulas do Congresso Nacional. As primeiras imagens são de madeira e ferro puro. Diversas texturas são exploradas para percebermos a mudança sendo efetuada aos poucos pelas mãos dos trabalhadores. No final da série de fotos, as cúpulas parecem boiar soberanas no horizonte, como se tivessem brotado de um momento para o outro. O impacto visual dos esqueletos metálicos das cúpulas em construção sugere um desenho a nanquim, com suas centenas de riscos. São imagens que “humanizam” as cúpulas e a arquitetura de Niemeyer.

    Ao captar as duas faces de Brasília – a das grandes obras modernistas que marcaram época e a das favelas nascidas às margens do plano piloto –, Gautherot revela a identidade da capital nacional. É uma cidade que, como o resto do país, esteve cercada de contrastes desde o seu nascimento.

    As séries fotográficas de Brasília ajudam a entender a proposta modernista de Niemeyer e Lúcio Costa, como se deu a imigração nordestina para o Planalto Central, como viveram os primeiros habitantes da capital. Se é difícil imaginar o Rio de Janeiro do século XIX sem as pinturas de Debret ou sem as fotografias de Ferrez, a vida dos índios do Xingu sem as fotos de Manzon, e se saberia menos sobre a cultura afro-brasileira sem o trabalho de Verger, sem Gautherot o Brasil não teria uma memória tão detalhada da criação de Brasília.

    Andréa Cristina Silva é fotógrafa, bolsista da Biblioteca Nacional e autora da dissertação “A memória da construção e a construção de memórias. Brasília sob o olhar de Marcel Gautherot” (UniRio, 2009).

    Saiba mais - Bibliografia

    ANGOTTI-SALGUEIRO, Heliana (org. e ed.). O olho fotográfico – Marcel Gautherot e seu tempo. São Paulo: Faap, 2007. Edição bilíngue português-inglês.
    INSTITUTO MOREIRA SALLES (org.). O Brasil de Marcel Gautherot. São Paulo: Editora do Instituto Moreira Salles, 2001.

    Saiba mais - Internet
    www.ims.uol.com.br

    Saiba mais - Filmes
    “Conterrâneos velhos de guerra”, de Vladimir Carvalho, 1992.
    “Contradições de uma cidade nova”, de Joaquim Pedro de Andrade, 1967.