Muamba de longa data

Mariana Flores

  • Os irmãos argentinos Juan e José Comas, comerciantes estabelecidos no município brasileiro de Uruguaiana, esperavam a chegada de um grande carregamento. Domingos Quincoza, ex-guarda da Alfândega, havia sido contratado para liderar o grupo de vinte homens – entre brasileiros, argentinos e uruguaios – que pegariam as mercadorias na margem do Rio Uruguai. Todos os homens do bando vinham devidamente armados, como era costume em operações deste tipo. O carregamento ilegal atravessaria a fronteira em um bote, que teria que aguardar, no lado argentino, o momento certo para cruzar o rio e fazer a entrega na margem brasileira. Quincoza tinha bons contatos em seu antigo trabalho e sabia que aquela noite seria ideal. Afinal, era um sábado, e poucos guardas ficariam de plantão. Além disso, uma tempestade estava a caminho e deixaria a noite muito escura, dificultando que o bando fosse avistado.

    Quando os homens de Domingos completaram o percurso, só faltava entregar as mercadorias na casa de negócio dos Comas, onde seis pessoas as receberiam. Mas, nesse momento, todos foram surpreendidos pela chegada dos guardas da fronteira. Alguns integrantes do bando conseguiram fugir, outros foram presos, e os irmãos Comas acabaram indiciados como réus em um processo de apreensão de contrabando. Essa história aconteceu numa madrugada de novembro de 1864. Episódios como este eram bastante frequentes, ao longo do século XIX, nas fronteiras no sul do Brasil. Mais comuns, no entanto, foram as ocasiões em que o comércio clandestino teve sucesso e os produtos cruzaram a fronteira sem problemas.

    Isso era feito de várias maneiras. Muitas vezes, o contrabandista só contava com seu cavalo para carregar as mercadorias, que podiam ser revendidas posteriormente ou servir para consumo pessoal. Mesmo que portasse somente pequenos carregamentos, ele tinha que estar sempre atento para que os guardas de fronteira não atrapalhassem seus planos. A fim de evitar as patrulhas com mais facilidade, o comerciante de mercadoria ilegal procurava andar em grupo com outros companheiros, de preferência à noite, e amarrava o que fosse possível nos arreios das montarias – sem exagerar no peso dos fardos –, para que pudesse fugir se fosse preciso.

    Mas eram os grandes contrabandos – como o que foi feito pelos irmãos Comas – que preocupavam as autoridades. Em geral, eles movimentavam cifras incalculáveis, que não passavam pelas mãos dos funcionários da Alfândega. Isso comprometia a arrecadação de impostos e os lucros dos grupos mercantis da região mais desenvolvida da província: Porto Alegre, Rio Grande e Pelotas. Essas operações eram feitas por mercadores que queriam abastecer suas casas de comércio com produtos importados, que eram, obviamente, adquiridos por um custo muito menor do que os que passavam legalmente pela fronteira. O tráfico dispunha de um aparato complexo que envolvia transporte, bandos de homens armados para descarregar as mercadorias e escoltá-las até seu destino e informantes que estavam sempre dando a posição dos guardas de fronteira, além de cúmplices na própria Alfândega. Estima-se que, pela via oficial, um comerciante tinha que desembolsar cerca de 30% a 40% do valor de sua mercadoria para satisfazer o fisco. Já por meios ilícitos, ele pagava apenas de 15% a 20%.

    O que mais deixava as autoridades em polvorosa era saber que as mercadorias ilegais chegavam a casas de comércio muito distantes da fronteira e, às vezes, bem próximas do porto de Rio Grande. Mas por que os comerciantes do oeste do Rio Grande do Sul preferiam se aventurar nos mercados argentino e uruguaio em vez do nacional? A resposta está na facilidade de acesso a esses lugares. Navegar pelo Rio Uruguai até os portos internacionais de Buenos Aires e Montevidéu, localizados no Rio da Prata, era bem mais fácil do que percorrer as tortuosas estradas que ligavam as fronteiras da província à região portuária.

    As mercadorias que vinham dos portos platinos percorriam o Rio Uruguai e eram descarregadas nos portos fluviais que faziam fronteira com a província em Uruguaiana, São Borja e Itaqui. Por conta de duas quedas d’água que havia no rio, elas podiam seguir por duas vias: eram colocadas em carretas até que pudessem retomar o curso fluvial em segurança ou eram transportadas por terra até a fronteira com o Uruguai, tendo como destino os municípios de Santana do Livramento e Quarai. Ao longo desses percursos, a produção local, fosse de origem agrícola ou pecuária, era acrescentada aos carregamentos nos entrepostos comerciais. A maior parte era composta de tecidos europeus de todas as qualidades e preços – chita, linho, seda, gorgorão. Os demais artigos iam dos mais simples aos mais refinados, como utensílios domésticos, ferragens, baralhos, chapéus, sapatos, meias de seda e pregadores de cabelo. Frequentemente, também seguiam bebidas alcoólicas variadas e “molhados”, isto é, comestíveis, como amêndoas, azeite, chá e especiarias. Mas, basicamente, o que mais saía pela fronteira oeste eram carregamentos de erva-mate, farinha, fumo, cachaça e couro.

    A rota comercial era a mesma utilizada pelo comércio lícito. A diferença estava no momento de atravessar a fronteira: enquanto o contrabando se valia de artimanhas para escapar da fiscalização, o comércio legal passava pela Alfândega. A opção dos mercadores por manter a conexão com os portos platinos também se explicava pelas Leis de Livre Comércio de 1852 adotadas pela Argentina e pelo Uruguai, que decretavam a livre navegação estrangeira nas vias fluviais da Bacia do Prata, da qual o Rio Uruguai fazia parte. Segundo essa legislação, mercadorias estrangeiras que seguiam para os países vizinhos não sofriam taxações alfandegárias. Apoiados nisso, numerosos portos fluviais na Argentina, no Uruguai e no Rio Grande do Sul foram se estabelecendo, se desenvolvendo e fazendo articulações entre si. Tamanha facilidade atraiu os comerciantes brasileiros e foi o grande impulso para o desenvolvimento dessa região fronteiriça.

    Outro fator que contribuiu muito para essa atividade foi a corrupção de funcionários públicos. Boa parte desses produtos contrabandeados entrava no Brasil pela Alfândega. Alguns deles passavam escondidos no meio de outras cargas por conta das boas relações que eram mantidas entre os comerciantes e alguns empregados da repartição, que faziam vista grossa ou declaravam a mercadoria como bagagem pessoal. Mas como era necessário assegurar para os governos provincial e imperial uma imagem de eficiência e credibilidade à repartição por meio da arrecadação, a maior parte do que era ilegal e passava pela Alfândega não ficava totalmente isenta de taxação. Nestes casos, as guias com as listas de mercadorias que supostamente faziam parte do carregamento eram falsificadas ou simplesmente não eram conferidas. Essa conduta permitia a circulação de produtos além dos listados ou de melhor qualidade – que eram declarados como artigos inferiores, com imposto menor.

    Esses procedimentos também eram facilitados pelo fato de que não costumava haver alterações no quadro de funcionários da Alfândega de Uruguaiana, e estes, sem exceção, estavam atrelados às redes de poder locais. A cada novo inspetor contratado, havia um período de ajuste entre o recém-chegado e os que ali já estavam. Faz sentido pensar que um inspetor que se propusesse a reprimir efetivamente o comércio ilícito sofreria retaliações por parte dos mercadores e acabaria não durando muito tempo no cargo. Se os novos empregados precisavam se atrelar às redes locais para permanecer na Alfândega, por outro lado, as redes locais também precisavam do respaldo de quem controlava a burocracia.

    Os governantes do Rio Grande do Sul admitiam em seus relatórios não haver controle sobre o contrabando praticado nas fronteiras do Rio Grande do Sul. Dessa forma, a Assembleia Provincial reivindicava ao poder imperial soluções para a contenção do comércio ilícito. Os comerciantes das principais praças de negócio lícito da província se mobilizavam por intermédio de suas Associações Comerciais e jornais de comércio para tentar combater essa situação. Nesse contexto, os contrabandistas da fronteira iam adaptando suas práticas a fim de sustentá-las e conservá-las, impondo assim ao governo e ao comércio lícito uma verdadeira queda de braço que ainda se estenderia pelas primeiras décadas do século XX.

     

    Mariana Flores da Cunha Thompson Floresé autora da dissertação “Contrabando e contrabandistas na fronteira oeste do Rio Grande do Sul. 1851-1864” (UFRGS, 2007).

     

    Saiba Mais - Bibliografia

    GIL, Tiago Luis. Os Infiéis transgressores: elites e contrabandistas nas fronteiras do Rio Grande e do Rio Pardo (1760-1810). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007.

    LOPES NETO, João Simões. “Contrabandista”. In: Contos Gauchescos e Lendas do Sul. Porto Alegre: L&PM, 2002.

    Saiba Mais - Filme

    “O banheiro do Papa”, de Enrique Fernandez e Cesar Charlone (Brasil/França/Uruguai, 2007).