Muito Abelhudo, Muito Amável

Lúcia Granja

  • Em 11 de setembro de 1864, Machado de Assis assim se referiu às iniciais de seu nome, com as quais assinava a série de crônicas “Ao Acaso”, publicadas semanalmente no Diário do Rio de Janeiro:

    “ Mais algumas linhas, e vou escrever as minhas iniciais.
    Que querem dizer estas iniciais? Perguntava-se em uma casa esta semana.
    Uma senhora, em quem a graça e o espírito realçam as mais belas qualidades do coração – disse-me um amigo, – respondeu:
    – M.A. quer dizer _ primeiramente, “Muito Abelhudo” _ e depois, “Muito Amável”.

    Este pequeno trecho ilustra o grande interesse que desperta a leitura das ainda pouco conhecidas crônicas de Machado de Assis. Como destacou a graciosa senhora, o narrador M.A., ao recontar e comentar os diversos fatos e ocorrências da semana, oferece uma síntese deles, cujo tom parece ficar entre amabilidade e astuta intromissão. Não é difícil imaginar que essas crônicas ultrapassem, invariavelmente, essas duas qualidades. Por isso mesmo, seguindo ainda os passos dessa senhora, os leitores têm sempre que adotar a mesma atitude investigativa, para além da construção mais superficial do texto machadiano, e assim alcançar sua profundidade. 

  • Um dos mitos em torno da análise da obra de Machado de Assis é o da sua falta de comprometimento com as questões de seu tempo. Alguns críticos esperam de um escritor e intelectual como Machado, que tivesse participado mais ativamente da vida política e social de sua época. Esta opinião crítica é, contudo, imprecisa, e tal equívoco vem sendo constantemente desfeito. Especificamente em relação ao jornalismo, uma só pergunta basta: como poderia Machado de Assis ter escrito, por mais de trinta anos, e quase ininterruptamente, crônicas de variedades para os periódicos cariocas e, ao mesmo tempo, não ter se envolvido, opinado ou tomado partido nas questões de seu tempo? Em Machado de Assis desconhecido, de 1955, Raimundo Magalhães Jr., biógrafo e crítico de Machado, já indicava que “para situar-se a posição de Machado de Assis na política do Império, é preciso prestar-se atenção principalmente às suas opiniões de jornalista, ao pensamento expresso em seus artigos e crônicas, uns e outros só em parte divulgados”. Mais recentemente, John Gledson, na introdução de sua edição à série “Bons Dias”, publicada por Machado entre abril de 1888 e agosto de 1889, afirma que essas crônicas “dão-nos uma visão única das opiniões políticas de Machado de Assis”. A série teria ainda “um fascínio especial neste aspecto, porque (...) coincide com uma conjuntura de tão grande importância na história brasileira como são a abolição da escravatura e o fim gradual e inevitável do império.” Faz parte desta série de crônicas o primeiro texto que Machado escreveu depois da abolição, uma de suas mais conhecidas crônicas, de 19 de maio de 1888, e que conta a história da alforria do escravo Pancrácio. O interesse da série é enorme, e vale como exemplo para dizer que insistir na alienação de Machado de Assis, ou negar o interesse desses escritos pela história de seu tempo, equivale a desconhecer toda a abrangência de sua obra.

  • O jovem jornalista já escrevera algumas vezes sobre escravidão. Voltando vinte e quatro anos no tempo, a crônica de 25 de julho de 1864 esclarece um pouco mais algumas idéias de Machado. Nesse texto, as considerações iniciais do cronista são, ao mesmo tempo, “vôo livre da imaginação”, a que o convida uma visita a um canteiro de rosas, e “reflexões prosaicas e aflitivas”, às quais chega pela leitura de uma notícia nos jornais: a invenção de um vinho de rosas. Ele conclui essa excursão inicial por assuntos como rosas, vinhos e falsificações, gradação da poesia do cotidiano ao noticiário dos jornais, com uma exclamação dissimuladamente consternada: “Pobres rosas! Não foi para estes ensaios químicos que Deus as fez tão belas, e que os antigos vos ligaram ao mito de Vênus”. Opera, assim, uma inversão de sentidos que aparece juntamente com a corrosão do clichê poético que envolve as rosas, na medida em que aponta o seu caráter utilitário, o experimento químico. A partir daí, faz a transição entre os diversos assuntos que deveria comentar, e passa a falar sobre a omissão dos fiscais do município no desempenho de suas funções: “A existência desses fiscais só é conhecida, de quando em quando, por umas notícias que a imprensa publica(...)”. Tais notícias traziam dados vagos e irreais a respeito das visitas dos fiscais e das multas, que o cronista comenta com ironia, sugerindo-lhes detalhamento. A seguir, conclui: “Acho inocentíssima a idéia a que atribuo essas publicações, em comparação com outra idéia e outras publicações, de que não são raros os exemplos”.

  • Chega, enfim, ao ponto alto dessa crônica, onde a questão da escravidão entrará em cena. O narrador conta que assistira a um leilão de escravos no qual se apregoava o preço de uma “pobre criancinha de olhos ignorantes e espantados para todos”. Ali ele conheceu um indivíduo, “mais curioso que compadecido”, interessado naquele bem “semovente”. Tal personagem, quando soube que conversava com um cronista, passou a fazer todos os esforços para vencer a disputa do leilão.  A descrição, embora curta, lembra as ações de uma batalha: “cobria os lances com incrível desespero, a ponto de pôr fora de combate todos os pretendentes, exceto um que ainda lutou por algum tempo, mas que afinal teve que ceder.” Afinal, “o preço definitivo da desgraçadinha” tornou-se bastante alto e, segundo conjetura o cronista ironicamente, “só o amor à humanidade poderia explicar aquela luta”. Pôs-se, então, à espreita do comprador, e da sua virtude – dizer discretamente ao leiloeiro que a quantia era para a liberdade da criança , e afirma que não se desiludiu. Da mesma forma como tornara ambígua a matéria poética das rosas no terra-a-terra do folhetim, o cronista inverterá agora as expectativas e criará a incômoda comicidade. Embora espreitasse a “virtude” do comprador, não se mostra surpreso com o brado em “alto e bom som”: “É para a liberdade!”. Conseqüentemente, aquilo por que o cronista esperava era justamente o oposto do que diz, ou a falta de virtude, e, nesse ponto, ele começa a sua própria batalha e conta que, depois de anunciar em bom som o seu ato benemérito, o homem disse-lhe, baixinho: “Não vá agora dizer lá na folha que eu pratiquei este ato de caridade”.  Com isso, volta imediatamente à questão das publicações, mote, aliás, que lhe dera o trânsito entre o assunto dos fiscais e o do leilão de escravos. Ao dizer que satisfez “religiosamente o dito do filantropo”, o cronista trabalha novamente com o registro da inversão: o “benfeitor”, é claro, queria muito que aquela história fosse publicada, mas o cronista publica a sua própria versão dos fatos, em que um dos pontos centrais é a confusão entre público e privado. O que fez então o cronista? Transformou o espaço do folhetim em um espaço para a “divergência” e, nessas terras onde ele próprio “maneja a enxadinha”, a história narrada adquiriu uma tonalidade oposta, no espectro das cores, àquela que o bravo combatente do leilão gostaria de ler. A vitória final estava, portanto, conferida ao hábil manejador das palavras.

  • Algumas questões chamam, ainda, a atenção do leitor: uma delas é a inserção de uma cena em meio a um texto narrado principalmente por comentários, trazendo o domínio da ficção para o espaço do jornalismo. É claro que, por natureza, a crônica contempla essa mistura, mas, nesse texto, a pequena cena acentua a nuança da crítica. Assim, além do equívoco no perfil dos textos dos jornais e da questão moral trazida pela virtude cambaleante do comprador da escrava, haveria outros motivos para que a crônica chamasse a atenção dos leitores em direção a esse episódio? Há nos jornais do mês de julho de 1864 inúmeros anúncios de leilões, mas, em geral, eles dizem respeito a bens imóveis, objetos e mercadorias. No dia 18 de julho, no entanto, lê-se no noticiário do Diário do Rio de Janeiro: “Leilões para hoje: Por Bastos Júnior, às 10 horas, na rua do Ouvidor, nº 18, de uma escrava e diversos objetos pertencentes ao espólio de um súdito português”. Esse comunicado ao público se repete na seção de anúncios, onde se divulga também, para o dia seguinte, um outro leilão de “escravos de ambos os sexos”. É claro que leiloar um escravo não era prática desconhecida no Rio de Janeiro do século XIX. Referindo-se à comercialização de novos escravos antes de 1830, ou da primeira lei de proibição do tráfico de africanos, Mary Karasch relata que, no começo do século, os africanos eram desembarcados como tinham viajado, isto é, sem roupa alguma. E eram submetidos ainda nus aos leilões públicos, durante os quais eram cuidadosamente inspecionados pelos compradores. Em 1864, porém, essas cenas eram cada vez mais raras, como mostram, por exemplo, os anúncios nos jornais. Entre os vários motivos que podem explicar esse fato, Karasch aponta um aumento no número de alforrias na década de 1860 com o crescimento do sentimento abolicionista – embora ele só tenha assumido forma plena na década de 1880. Mesmo assim, houve impacto no número de alforrias após a metade do século, em proporção à quantidade de escravos na cidade. Segundo levantamento feito pela autora, embora em 1870 restassem ainda 50.092 escravos na Corte, quase treze mil cartas de alforria haviam sido registradas na cidade do Rio de Janeiro e arredores rurais entre 1860 e 1869.

  • Seria exagero associar a indignação do cronista ao crescente envolvimento na causa escravista? Provavelmente, não. No entanto, há um outro endereço para a censura e o escárnio. Naquela época, houve, em média, mil e trezentas alforrias por ano no Rio de Janeiro. A virtude perde, então, o valor de individualidade e torna-se hipócrita. Anunciá-la, pior ainda, é ridículo _ não pelo critério moral, mas social. A liberdade da escrava, é claro, seria sempre bem-vinda, mas o problema constitui-se novamente no cruzamento entre o interesse público e o privado, em vários níveis _ desde a atitude de indivíduos como o da crônica até o noticiário dos jornais.

    Sem abdicar da crítica, portanto, Machado, muitas vezes em suas crônicas, demoliu-lhes os fins de utilidade privada e instituiu, nesse processo de desmascaramento, a utilidade pública de seu escrito semanal. As oscilações ficam assim evidentes: a síntese entre o amável e o abelhudo constitui o próprio método de escrever a crônica. Quanto à leitura, se o leitor a fizer de modo fugaz, e para uso privado, descobrirá o amável cronista que fala das rosas e, provavelmente, não entenderá em profundidade sua ironia. Caso opte pelo caminho das pedras, sentirá as ferroadas profundas do abelhudo, mas encontrará as idéias em outro nível de análise, e de utilidade pública, certamente. Caberá só a ele escolher.

    Lúcia Granja é professora de Literatura Brasileira na Unesp e estudiosa das crônicas de Machado de Assis. Atualmente, trabalha na edição de algumas das séries de crônicas do autor. É autora do livro Machado de Assis, escritor em formação (à roda dos Jornais). (Mercado de Letras/Fapesp, 2000).