O embaixador austríaco a acusava de tráfico de influência, enquanto o conselheiro Drummond, alto funcionário do Primeiro Reinado, apontava-a como culpada pela queda de José Bonifácio. Por outro lado, acredita-se que ela tenha sido a responsável pela instalação da Academia de Direito em São Paulo e que tenha doado as terras para o Cemitério da Consolação. Cento e quarenta e quatro anos após sua morte, sua memória continua arraigada no imaginário brasileiro, a ponto de ser considerada por alguns uma santa popular; por outros, uma cortesã inescrupulosa.
Nascida na cidade de São Paulo em 27 de dezembro de 1797, Domitila de Castro Canto e Melo, Titília para os irmãos, era a sétima e penúltima filha do casal João de Castro Canto e Melo, militar açoriano, e Escolástica Bonifácia de Toledo Ribas. Por parte de pai, descendia da nobreza lusitana; pela mãe, de bandeirantes ilustres. Mas, se tinha nobreza de sangue, dinheiro, não muito.
Alta, pele clara e expressivos olhos escuros, Titília casou-se em São Paulo, aos 15 anos, com o alferes Felício Pinto Coelho de Mendonça (1789-1833), de proeminente família mineira dona de lavras de ouro. O casamento, que durou de 1813 a 1819, rendeu a Domitila três filhos e duas facadas do marido. O príncipe encantado, cuja fortuna as línguas paulistas multiplicaram, era, na realidade, um sapo: bebia, jogava, maltratava a mulher. Tentando vender as terras que o casal havia herdado com a morte da mãe, Felício falsificou a assinatura de Domitila no contrato e depois tentou assassiná-la. Armou uma emboscada e a esfaqueou, alegando que ela era infiel. Felício foi preso, mas, devido à fortuna paterna, acabou sendo libertado. Domitila, entre a vida e a morte, levou mais de um mês para se restabelecer. Abrigada na casa do pai, lutou pelo divórcio e pela guarda dos filhos. O sogro ainda tentou, em vão, tirar as crianças de Domitila.
O príncipe regente D. Pedro (1798-1834) chegou a São Paulo em agosto de 1822 acompanhado do irmão caçula de Domitila, o alferes Francisco de Castro (1799-1868), que o apresentou à família. Casado desde 1817 com a arquiduquesa austríaca Leopoldina (1797-1826), D. Pedro não era nenhum modelo de fidelidade. Mas, de todas as amantes que teve, só Domitila o prendeu por tanto tempo [Ver RHBN nº 64]. O relacionamento começou em 29 de agosto de 1822 e durou sete anos, que podem ser acompanhados nas mais de 200 cartas trocadas entre eles e dispersas em arquivos nacionais e estrangeiros. Elas revelam o “homem Pedro”: terno e carinhoso com os filhos, mas também o amante fogoso que assina como “O Demonão”.
Domitila e a família se mudaram em 1823 para a Corte, onde viveram sob a proteção de D. Pedro, já imperador. Proteção que incluía joias, propriedades, escravos e refinamento, com o amante insistindo com ela para que não costurasse suas próprias roupas de gala.
Os rumores sobre o relacionamento aumentaram em 1824, quando D. Pedro fechou um teatro depois que soube que a amante fora impedida de entrar, supostamente por ela não ser uma mulher “honesta”. Em abril de 1825, tudo veio a público: ao sofrer uma afronta das damas de companhia da imperatriz, Domitila foi nomeada dama camarista pelo próprio imperador, cargo que a colocava hierarquicamente acima das demais. No mesmo ano foi feita viscondessa de Santos e em 1826, marquesa. Não somente o Brasil, mas também a Europa tomava conhecimento do caso. Os diplomatas apressaram-se em relatar o fato aos seus governos.
Mas o escândalo só estava começando. Em maio de 1826, D. Pedro reconheceu oficialmente a filha que teve com a amante em 1824. Isabel Maria (1824-1898) recebeu o título de duquesa de Goiás e foi apresentada à Corte e à imperatriz. Leopoldina não tinha mais a opção de ignorar o romance. Grávida, deprimida, sofrendo com a infidelidade do marido, faleceu no final do ano. Surgiram rumores de que Domitila, em conluio com o barão de Inhomirim, médico da Corte, a teria envenenado. A casa da suposta assassina foi apedrejada, e por isso passou a ser guardada por soldados.
Seis meses depois da morte da imperatriz, D. Pedro decidiu casar-se novamente. Diante das dificuldades para se conseguir uma noiva – seus emissários passaram dois anos ouvindo recusas –, cogitou casar-se com a marquesa, mas a princesa Amélia de Leuchtenberg (1812-1873), sobrinha do rei da Baviera, aceitou a proposta. Titília, grávida de Maria Isabel (1830-1896), futura condessa de Iguaçu, foi banida da Corte em 1829 pelo amante, aparentemente arrependido de seus “pecados”.
A Domitila que voltou para a provinciana São Paulo em 1829 era muito diferente da que havia partido para Minas Gerais com o marido em 1813. Com bens que incluíam mais de 40 escravos, tornou-se uma das pessoas mais abastadas da cidade, e isso significava independência. As facadas, a mancebia e o banimento foram superados, e ela soube aprender com seus infortúnios. Alguns paulistas não queriam recebê-la socialmente? Ela os visitava primeiro. O presidente da província, Rafael Tobias de Aguiar (1795-1857), havia se interessado por ela? Amancebaram-se.
O relacionamento iniciado em 1833 foi oficializado nove anos depois, durante a Revolução Liberal de 1842, quando membros proeminentes do Partido Liberal pegaram em armas contra a política imperial que tirava parte da autonomia política das províncias. Com o destino incerto do companheiro, principal líder do movimento, a legalização do casamento tornou-se necessária para os negócios da família e o futuro dos filhos. Sozinha, ela conduziu os filhos de São Paulo a Sorocaba, perdendo-se pelas estradas, para juntar-se ao marido.
Com o término desastrado da revolta e a fuga de Tobias para o Rio Grande do Sul, ela se refugiou com as crianças e a sogra em um convento de Sorocaba, onde logo assumiu a liderança. A própria Domitila cavou uma vala no jardim do prédio para esconder a prataria. Sua presença no local impediu que os homens do futuro duque de Caxias (1803-1880) – líder das tropas governamentais contra o levante liberal –, ao invadir a cidade, profanassem o local. Como deferência pela marquesa, Caxias mandou que a escoltassem para São Paulo, não sem antes escrever para casa informando que encontrou Domitila “ainda fresca”, com mais de 40 anos e 14 gestações que resultaram em sete filhos.
Ao saber que o marido havia sido preso no Sul, Domitila partiu para a Corte e rogou, por meio de um procurador, que D. Pedro II (1825-1891) a deixasse cuidar do companheiro doente. O requerimento foi deferido, e ela pôde morar com o marido na prisão. Meses depois, o imperador anistiou os envolvidos na revolução, e o casal voltou para casa.
Sempre lembrada por seu caso de amor com Pedro I, Domitila é esquecida quanto ao seu envolvimento nas questões nacionais. Na Corte, doara como “brasileira, e brasileira paulista”, grande quantia à Guerra da Cisplatina (1825-1828). Durante a Guerra do Paraguai (1864-1870), abrigou em sua fazenda a tropa que marchava para Mato Grosso, presenteando soldados e oficiais com dinheiro. Ninguém concorria com a marquesa nas comemorações do 7 de Setembro e do 11 de Agosto, dia do início dos cursos jurídicos no Brasil. Protetora dos estudantes de Direito, recebia-os em seus saraus e cuidava deles quando adoeciam. Sob seu teto, centenas de casamentos entre moças paulistas e futuros bacharéis foram arranjados. Daí surgiu a lenda de que ela seria responsável pela instalação da Academia de Direito em São Paulo.
Domitila, membro do Partido Liberal, conduzida por Tobias de Aguiar, cumpriria sua vontade testamentária: ver os filhos formados e dentro da causa liberal. A marquesa criaria republicanos ilustres, entre eles João Tobias de Aguiar e Castro (1835-1901), participante da Convenção de Itu de 1873, que levou à fundação do Partido Republicano Paulista.
Ela faleceu em 3 de novembro de 1867, aos 69 anos. Rompendo os padrões de comportamento esperados de uma mulher de seu tempo, chocou a sociedade. Ao mostrar sua força, fez-se respeitada. Seu enterro foi seguido pela elite cultural, econômica e política paulista, com a presença do presidente da província, Saldanha Marinho. Deixou em testamento dinheiro para a compra das alfaias litúrgicas da capela do Cemitério da Consolação e esmolas para a “pobreza envergonhada”. No seu jazigo, há sempre flores frescas e uma placa de agradecimento por uma graça alcançada.
Paulo Rezzuttié autor de Titília e o Demonão. Cartas inéditas de D. Pedro I à marquesa de Santos (Geração Editorial, 2011) e de Domitila, a verdadeira história da marquesa de Santos (no prelo).
Tráfico de influência na Corte?Diversos foram os despachos diplomáticos e até discursos políticos tratando da influência da marquesa de Santos no tráfico de poder no governo.
O barão Wenzel de Mareschal, diplomata austríaco, relatava a Viena, em 12 de agosto de 1826, que, “como S. M. não é muito generoso, e é preciso que todo o mundo viva, a casa de sua amante transformou-se em verdadeira agência de negócios onde tudo tem seu preço”.
Já Bernardo Pereira de Vasconcelos, em discurso na Câmara dos Deputados em 3 de abril de 1829, insinuava que bastava “fazer a resenha dos empregados neste importante ramo da pública administração para se reconhecer que a deusa do patronato tem presidido à nomeação de não poucos”.
No entanto, em algumas das cartas conhecidas existem indícios de que D. Pedro não seria tão conivente como pretendem os detratores de Domitila. Em 10 de outubro de 1827, respondendo à viscondessa de Castro, ninguém menos que a mãe da marquesa, sobre um pedido para empregar um protegido, o imperador recusa, justificando não querer “preterir criados meus e antigos”. Na mesma carta, ele pede que a mãe desculpe a filha por não intervir no assunto: “Sinto muito que se admirasse que a marquesa me não quisesse mandar pedir; (...) [ela] é consequente, e, portanto, se ela praticasse o contrário então é que deveria ser estranhada”.
Saiba Mais - Bibliografia
RANGEL, Alberto. Dom Pedro e a marquesa de Santos. São Paulo: Brasiliense, 1969.
SETÚBAL, Paulo: A marquesa de Santos (romance). São Paulo: Geração Editorial, 2009.
Mulher de fibra
Paulo Rezzutti