Na boca do povo

Audrey Furlaneto

  • Ela já foi citada por Pelé, na década de 1990, como modelo de eficiência. Foi chamada de “maluca” numa passeata pelas ruas do Rio de Janeiro nos anos 1980. Na mesma manifestação, também era tida como “redentora”. Surgiu entre os personagens mais lembrados quando Dilma Rousseff foi eleita presidente, em 2010. Seus dois primeiros nomes são os de, pelo menos, 9.000 mulheres da lista telefônica nacional. Hoje, a figura da princesa Isabel aparece em discursos tão variados que fazem soar leviano qualquer rótulo dado a ela.

    De todos, o mais recente – e talvez mais pitoresco – é o de candidata a santa. A princesa é tema de um dossiê completo que está pronto para ser encaminhado ao Vaticano, a fim de dar entrada no processo de beatificação. O projeto, elaborado por monarquistas e “isabelófilos” convictos da associação Causa Imperial, apoiados pelo Instituto Dona Isabel I, foi enviado à Arquidiocese do Rio no final do ano passado e, em dezembro, uma comitiva do Vaticano, em visita à cidade, recebeu o pedido oficial. Há, no entanto, um pequeno empecilho à causa: embora tenha assinado a Lei Áurea e defendido a causa abolicionista, não há registros de que a princesa tenha feito algum milagre, um dos três requisitos para que a beatificação seja assinada pelo papa. Os outros dois critérios – provas de virtude em grau heroico e santidade popular – são um tanto mais, digamos, realistas.

    “Dona Isabel era uma mulher de virtudes”, diz o historiador Bruno de Cerqueira, que fundou o Instituto Dona Isabel I em 2001. Embora seu trabalho na instituição seja preservar a memória da princesa, ele afirma que sua imagem “sobrevive de forma extremamente complexa”. “Se, por um lado, a questão da Lei Áurea dá um culto à figura dela, por outro, não se sabe quem foi ela antes e depois da assinatura. É uma ilustre desconhecida”, diz Cerqueira.

    Os olhares para a história da princesa aumentaram em 2010, quando da eleição de Dilma Rousseff para a Presidência da República. Incontáveis artigos jornalísticos buscaram semelhanças entre ela e a princesa, na tentativa de relembrar que, antes de Dilma, outra mulher havia comandado o país. Da historiografia, porém, a princesa sumiu, como defende Eduardo Silva, pesquisador da Casa de Rui Barbosa e autor de As camélias do Leblon e a abolição da escravatura, de 2003.

    “Não só a princesa sumiu da história como a presença do povo também. Registrou-se apenas uma elite que fazia belos discursos no Parlamento, sabia falar inglês e francês. Mas a princesa recebia negros em sua casa, estava ligada à causa abolicionista. Prova disso é que, no dia da Abolição, ela recebeu um belíssimo buquê de camélias, símbolo da abolição e do quilombo do Leblon. Prova também de que ela e o povo tinham atitudes de protagonistas da abolição”, conta Silva.

    No entanto, segmentos do próprio movimento negro passaram a rejeitar o 13 de Maio no início do século XX, lembra Silva, vendo-o como “a data que retratava a passividade dos negros diante da liberdade concedida por uma princesa”. No lugar desse dia, elegeram o 20 de novembro, dia da morte de Zumbi, líder guerreiro do Quilombo de Palmares que simbolizava a luta negra contra a opressão da escravidão. “Mas se a História de alguma forma nega, o inconsciente coletivo deixa vir à tona, e, por exemplo, uma das oferendas mais importantes para Oxalá são camélias brancas”, afirma o pesquisador, lembrando que a princesa cultivava exatamente essas flores. “Não se explica um país que retira o povo e a princesa de sua História. Temos uma presidente mulher e podemos aproveitar para incorporar a princesa Isabel na História do país.”

    A causa do “ofuscamento” da figura da princesa nos registros históricos pode estar ligada ao machismo, segundo Silva. Isso porque “o sistema não era apenas escravista, era patriarcal escravista”. “Estamos vivendo hoje as últimas ondas disso que aconteceu em 1888. Vivemos, por exemplo, a discussão de cotas, de preconceito racial. Isso são ondas do que começou ali, em 1888. Antes, tudo isso era natural”, avalia ele, que chama a atenção para um importante detalhe: o fato de o 13 de maio de 1888 ter sido um domingo. “Isso quer dizer que a lei foi assinada a toque de caixa, que fazendeiros se reuniram no sábado e que, no domingo, decidiu-se assinar. Isso porque havia pressão popular.”

    Há quem veja a princesa como modelo de eficiência, como o fez Pelé ao assumir, em 1996, o cargo de ministro dos Esportes. “Estamos de braços abertos para eventuais mudanças. Não serei o Tiradentes, que não completou seu trabalho, mas a princesa Isabel”, disse o ex-jogador quando iniciava seus trabalhos no posto. A citação é lembrada pelo historiador Robert Daibert Júnior [Ver artigo “Entre o trono e o altar”, página 22].

    Para lembrar os 100 anos da abolição em 1988, recorda Daibert Júnior, a Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro organizou passeata pelas ruas da cidade. Faixas respondiam à pergunta feita pela prefeitura: “O que Zumbi diria à Princesa Isabel?”. As respostas foram de “Obrigado, sua maluca. Já é muito tarde. Não valeu a pena. Cansei de apanhar” a “Sou grato por você libertar meus pretos. Assinado: Seu amigo, Zumbi”.

    “Há aqueles que a admiram como protagonista que interfere num cenário, mas ainda encontro, especialmente em segmentos do movimento negro, um certo ressentimento. Por outro lado, nas congadas ela é homenageada”, diz Daibert Júnior.

    Para exemplificar as várias imagens de hoje, o historiador lista uma série de “anedotas, ou construções que o povo faz” sobre sua biografia. Há, por exemplo, quem diga que ela aboliu a escravidão simplesmente por estar apaixonada por um negro com quem havia dançado – André Rebouças, conselheiro de D. Pedro II e um dos defensores da abolição.  Há ainda a invenção de que ela teria incentivado a Lei do Ventre Livre por ter engravidado de um homem negro – e, em seguida, teria perdido o filho. “Por esse tipo de anedota e por homenagens, vê-se que há sempre uma tentativa de aproximação do povo com a princesa, mas é preciso fazer a ressalva de que isso não é um movimento único”.

    Segundo ele, a rejeição do movimento negro à comemoração no dia 13 de Maio, que já chegou a ser feriado nacional, é quase unânime atualmente – comemora-se muito mais o 20 de Novembro. “Há uma disputa por memória, e como se trata de uma disputa, cada um seleciona aquilo que lhe convém, a princesa Isabel ou Zumbi.”

    Para o historiador Walter Fraga Filho, autor de Encruzilhadas da liberdade: Histórias de escravos e libertos na Bahia, de 2006, houve uma disputa pela memória da Abolição, a fim de “eleger” os personagens centrais e, assim, “a imagem da princesa Isabel acabou diluída, deixando de ser referência central nas comemorações do 13 de Maio”. Para o candomblé, por exemplo, a data é dedicada ao Preto Velho. Em Santo Amaro, na Bahia, os terreiros se unem todos os anos no dia 13 para a tradicional Festa do Bembé, que relembra a Abolição. A festa, conta Fraga Filho, ganhou força nos últimos anos, mas é “um elemento do candomblé, e não uma exaltação à princesa”. Ele tem notícia de apenas uma lira (conjunto musical com maestro) que ainda desfila no dia 13 para celebrar a data – a Lira Ceciliana, fundada no final do século XIX pelo maestro e abolicionista Manuel Tranquillino Bastos.

    “Nas primeiras décadas do século XX, a força simbólica da princesa Isabel ainda era grande, mas na segunda ou terceira geração isso vai se modificando, outros personagens vão surgindo, as causas são renovadas e nascem novos heróis”, explica Fraga Filho.

    Se as festas na Bahia lembram o feito da Abolição e não apenas a figura da princesa, há, no Rio, tentativas de reintegrá-la à cultura popular. No ano 2000, a escola de samba Mangueira, cuja sede fica nos arredores do Palácio de São Cristóvão, residência da princesa e da família imperial (atualmente sede do Museu Nacional), desfilou com enredo sobre a Abolição e a participação do povo no Segundo Reinado. Foi o suficiente para ela cantar na avenida “Vi no morro da Mangueira/ sambar de porta-bandeira a princesa Isabel”.  

    Para Daibert Júnior, é difícil dizer que existe apenas uma imagem da princesa Isabel: “Como historiador, converso com muitos outros historiadores e pessoas comuns, e o que percebo, para dizer de uma forma simples, é que há de tudo um pouco”.

     

    Audrey Furlanetoé jornalista.