Na cadência das sombras

Fabiana Bruce Silva

  • Um balé sem dançarinos: é esta a visão que se tem ao olhar a foto “Sombras do Frevo”. A imagem poderia ser apenas mais uma das muitas da tradicional dança pernambucana, não fosse o fotógrafo letão Alexandre Guilherme Berzin (1903 – 1979) o seu autor. Ele decidiu fazer um recorte no instantâneo de forma que estão em quadro somente os contornos dos passistas no chão.

    A energia da dança é acentuada na fotografia do apaixonado pela cultura brasileira e pelo carnaval que registrou o frevo dos que “frevem” (corruptela que deu origem ao nome do ritmo), como dizem os pernambucanos. Para fazer a foto, ele escolheu as cercanias da Praça da Independência, entre os bairros de Santo Antônio e São José, no centro da cidade do Recife, região que passou por reformas urbanas e caracterizava-se pela grande concentração popular, não só durante o carnaval.

    “Sombras do Frevo” mostra volumes e gestos que indicam a malemolência do passista. Na foto em preto e branco, as sombras projetadas na rua contrastam com o brilho dos paralelepípedos, cujas texturas em tons de cinza e branco refletem a intensa luz do sol. No instantâneo, o retratista, que era também excelente laboratorista e conhecia a matemática da fotografia, sua geometria, sua energia iluminada, sua química, assume declaradamente a manipulação da imagem (já que ela é resultado de um corte horizontal, posterior ao momento do clique). As sombras parecem adquirir vida própria, e talvez tenham motivado Berzin a destacá-las. Há também uma luz que envolve as sombras dos passistas, tornando-as mais desenhadas que eles próprios. O letão seria um daqueles fotógrafos que procuram dominar o aparelho apropriando-se de sua escrita.

    Nascido em Riga, cidade portuária da Letônia – um pequeno país próximo da Alemanha, da Polônia e da Rússia –, não era fácil para Berzin explicar suas origens. É possível imaginar como era complicada essa tarefa, mesmo para o fotógrafo que falava oito idiomas (letão, polonês, alemão, russo, inglês, francês, espanhol e português). Acabou assumindo a nacionalidade que lhe foi incutida pelos pernambucanos: era alemão, para simplificar. Guilherme Berzin, naturalmente Behrsing, era engenheiro industrial, e seu aprendizado de fotografia ocorreu em Dresden, na Alemanha.
     O sábio artista da máquina, de olhos claros e pele queimada de sol (as fotos em preto e branco o revelam), era capaz de explorá-la em gabinetes e ao ar livre. Além dos passistas de frevo, Berzin registrou os maracatus, seus cortejos e as fantasias criadas pelo povo nas ruas. Ele não chegara ao Brasil por conta da Segunda Guerra Mundial, como muitos migrantes europeus. A bordo do navio Attika, aportou no país em 1927, vindo a convite do fotógrafo italiano Felipe A. Fidanza (? – 1904) para trabalhar na Casa Matriz, em Belém do Pará. No ano seguinte, mudou-se para uma filial da empresa no Recife, e em cinco anos já era um fotógrafo independente, trabalhando em seu próprio estúdio, o Foto AB.

    Nos anos 1950, já estava estabelecido em Pernambuco havia algumas décadas e colhia os frutos desse convívio com a tradicional sociedade pernambucana. Seu olhar estrangeiro e sua percepção dos costumes produziam imagens bem fabricadas, e ele já fotografava para um público vasto: pessoas comuns, profissionais liberais, do comércio, das indústrias e das instituições públicas.

    Mas, dos muitos registros do cotidiano da cidade que produziu, “Sombras do Frevo” talvez seja sua fotografia mais conhecida. Feita provavelmente em 1951, esteve em exposição permanente nas paredes do salão principal do Foto Cine Clube do Recife, entidade criada por Berzin em 1949, que funcionou no mesmo lugar de sua residência, no bairro da Boa Vista. A foto foi divulgada outras vezes, como no Catálogo do 1º Salão Nacional de Arte Fotográfica de Pernambuco, em 1954, organizado com a intenção de chamar para Recife fotógrafos de outras cidades que também tivessem clubes de fotografia. “Sombras do Frevo” foi impressa ainda nas páginas do jornal Diário da Noite, em 1957. Só que o periódico foi além da alteração que Berzin fizera na foto: publicou-a de cabeça para baixo, o que reforçava ainda mais a perspectiva de um balé de sombras. 

    Certamente essa foto, que possibilita múltiplas visões, foi usada por Berzin em aulas inaugurais dos cursos que ministrou por mais de 20 anos (entre 1948 e 1969) para mostrar como toda imagem é manipulável, é fabricação. Por isso, a análise de fotografias deve descartar o estatuto da verdade e da realidade.

    Por meio de “Sombras do Frevo”, podemos exercitar nosso olhar, refletindo sobre o que são as sombras em uma fotografia. É nesta parte, onde há menor intensidade luminosa, que o visível, o iluminado (aquilo que normalmente nos interessa numa fotografia, o que o observador, na maioria das vezes, procura) é tocado pelo invisível. É como se a sombra nos mostrasse que somos também nossos fantasmas, que nos contagiam inclusive no passo rasgado, na alegria do frevo, onde podemos nos recordar de outros carnavais.

    É possível supor que nessa fotografia Berzin quis mostrar e esconder algo, partindo da sombra do passista para exibir a “essência” do próprio frevo? Uma história de “brabos foliões”, apadrinhados das “melhores famílias” locais, nos dizeres de Valdemar de Oliveira (1900-1977) em seu livro Frevo, capoeira e passo? Ali está a dança em ato, sem o referente: este foi suspenso da imagem por um pé, para além de sua própria sombra.

    São as sombras que nos permitem ir ao entorno da imagem, seu antes e depois, que leva o historiador a pensar não somente nos lugares registrados, mas na preparação do fotógrafo, quem era e como via o mundo. A postura de Berzin nos faz lembrar a de um velho senhor de poucas palavras que respirava fotografia, ou melhor, que fizera dela sua vida.

    O flagrante de rua que Berzin captura, seu olhar sobre a cidade traduzido nas “Sombras do Frevo”, transforma a própria percepção que se tem do carnaval: o que vemos aqui é sombra; menos cor, mas ainda brilho. Essa era a intenção de Berzin: queria inventar (e inventou?) uma outra forma de observar o Recife e seus recantos. A fotografia nos induz a pensar numa maneira diferente de olhar, possivelmente mais crítica, discutindo aquilo que sempre se repete quando escrevemos história.

    “Sombras do Frevo” mostra que Berzin não se contentava em reproduzir o visível (aquilo que lhe pediam que reproduzisse), gerando apenas as mesmas imagens que caracterizam a folia para compensar a nossa ausência de experiências. Como fotógrafo, ele pretendia ir além. O “alemão” nos desafia a argumentar no entorno das fotografias, a dialogar com o invisível, que desconhecemos. Valoriza a sombra, e aí sim, depois dela, sua matéria, o corpo.

    É como se suas fotos abrissem portas para a reflexão, para a fabricação de histórias, uma nova perspectiva do nosso mundo que parece tão visto. Berzin, como um alquimista, fabrica um outro território de imagens possíveis para um mesmo Recife, contando-nos, com seu olhar de encantado das águas de Riga, outras histórias.

    Mas será que não foi nada disso que ele quis dizer quando cortou do frevo sua sombra? As respostas ficam a critério do leitor, do observador. As possibilidades narrativas a partir de um instantâneo são muitas. Nossa única certeza é que a riqueza das imagens está na sua ambiguidade. Hoje não temos mais o fotógrafo para ouvi-lo, podemos apenas homenageá-lo. A sombra do frevo mostra a alegria distorcida do brincante, só é preciso imaginar o restante da história... e ouvir os clarins.

    Fabiana Bruce é Professora da Universidade Federal Rural de Pernambuco e Autora da Tese “Caminhando Numa Cidade De Luz E De Sombras: A Fotografia Moderna No Recife Na Década De 1950” (Ufpe, 2005).

    Saiba Mais - Bibliografia:

    BAVCAR, Eugen. “A luz e o cego”. In: NOVAES, Adauto. ARTEPENSAMENTO. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

    BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1982.

    COSTA, Helouise e RODRIGUES, Ricardo. A fotografia moderna no Brasil. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ/Iphan/Funarte, 1995.

    FLUSSER, Vilém. A filosofia da caixa preta. Ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

    Saiba Mais - Filme:

    “Janela da Alma”, de João Jardim. Brasil, 1999.


    Digulgando Berzin


    Três instituições no Recife estão empenhadas em divulgar a obra desse fotógrafo: a Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), por intermédio da autora deste artigo; o Cehibra da Fundação Joaquim Nabuco, ao qual foi doada pela família do fotógrafo uma documentação que constitui a Coleção AB/FCCR; e o Museu da Cidade do Recife, que também possui em seu acervo uma rica documentação do seu trabalho.