Duzentos bilhões de cliques. Eis quantas fotografias a humanidade dispara durante um ano, segundo pesquisa divulgada pela Kodak brasileira em 2008. É como se cada habitante do planeta tivesse direito a produzir 33 fotos anualmente.
Não é o caso de se questionar como essa estimativa foi feita. O que importa é a conclusão, evidente para onde quer que se olhe: a fotografia está mais popular do que nunca. O preço acessível das câmeras digitais e a proliferação dos celulares com esse recurso promoveram uma verdadeira “inclusão visual” na última década. Principalmente em países desiguais e em desenvolvimento, como o Brasil. Por muito tempo restrita à elite, a arte de produzir imagens agora está nas mãos do povo. Todo mundo pode ser fotógrafo.
Será que esse rápido avanço tecnológico aponta também para uma transformação cultural? Se houver, ela germina entre os jovens, protagonistas da nova relação entre ser humano e máquina fotográfica. Seu comportamento lembra o daquele turista japonês que passa horas dentro de um museu e sai sem ter visto nada com os próprios olhos: filmando ou fotografando, a câmera observa tudo por ele – e, melhor, ainda armazena as imagens para mostrar aos amigos quando voltar. Em qualquer festa, show, evento ou simples reunião juvenil Brasil afora, lá estarão os celulares e as máquinas em ação. Feitos os registros, as mais variadas facetas de suas vidas se escancaram no Orkut (ou similares) – outra ponta da inclusão tecnológica da classe média baixa brasileira.
Com as máquinas digitais e a Internet, a revelação em papel cai em desuso. A maioria das fotografias tiradas aos milhões pelos jovens brasileiros nasce e morre no território virtual. Compartilhadas, enviadas por SMS, publicadas, copiadas, deletadas ou esquecidas para nunca mais num HD queimado por aí. O diagnóstico? Fotografia, hoje, é sinônimo de coisa transitória, passageira, descartável. Nada mais jovem. Exatamente o contrário da função para a qual foi criada a técnica, no século XIX – função que resistiu até outro dia mesmo: perenizar as imagens.
Enquanto as máquinas operavam com filme, cada clique era fruto de valiosa ponderação. Se estamos no último rolo, com suas 32 “poses”, convém não gastá-las antes do parabéns, certo? Depois, corria-se às lojas de revelação (outro comércio em extinção) para descobrir que metade das fotos ficou tremida ou, pior, velou!
As mudanças não se limitam à forma de produzir. Atingem a própria linguagem. “Hoje o ‘tremido’ está na moda”, surpreende-se Eliane Heeren, fotógrafa desde os anos 1980. Diz a lenda que Adolpho Bloch, que foi dono do falecido grupo Manchete, onde Eliane trabalhou, chegava a mastigar as fotos ruins que chegavam à sua mesa. Ruins, para o periodismo da época, eram as imagens com movimento aparente, falhas de foco ou de luz. “Outro dia, folheei uma revista e só vi fotos em movimento. Tudo a ver com a cultura digital”, conclui.
É uma cultura que ela viu nascer entre os alunos da Escola Oi Kabum!, do Rio de Janeiro – jovens entre 16 e 21 anos, de comunidades de baixa renda. Em 2000, na primeira versão do projeto, as câmeras digitais eram ilustres desconhecidas para sua turma. Trabalhavam apenas com filmes, revelavam as fotos no laboratório ou mandavam para uma loja especializada. Na nova turma, iniciada em 2009, todos os alunos têm câmera ou celular que tira fotos. Mas a intimidade com a fotografia não resulta em um olhar mais acurado a respeito da linguagem ou da técnica. Pelo contrário. “Hoje os meninos não conseguem ter um ‘desbunde’ estético com a fotografia de qualidade”, diz Eliane, referindo-se a cânones da arte do século XX, como Henri Cartier-Bresson (1908-2004) e Ansel Adams (1902-1984). Encantam-se mais com o experimentalismo do pintor inglês David Hockney (1937-), que já se aventurou em fotomontagens fragmentadas, cheias de ritmo e movimento.
Na era digital, palavra de ordem é a mistura de formatos e mídias. Curioso é que o próprio David Hockney defende a tese de que o casamento entre fotografia e pintura vem de longe. Técnicas “multimídia” eram exercidas antes mesmo da invenção da fotografia. Em seu livro O conhecimento secreto, que teve grande repercussão entre os historiadores da arte, Hockney analisa pinturas de artistas como Caravaggio (1571-1610) e Velázquez (1599-1660) para concluir que – pelo efeito das luzes e sombras que obtinham e pela precisão técnica com que criavam retratos – eles se valiam de uma ajudinha da tecnologia: guiavam-se por fiéis projeções ópticas das cenas, garantidas por jogos de espelhos e lentes. Hockney fez vários experimentos tentando recriar os métodos talvez utilizados pelos artistas do Renascimento. “As imagens que projetamos eram nítidas, em cores e se moviam”, escreve. É claro que os puristas ficaram de cabelo em pé com sua nova hipótese – que, teoricamente, desmereceria o talento de pintores consagrados. Ele não vê assim, até porque descobriu na prática como é difícil utilizar a técnica óptica: “Estou dizendo apenas que os artistas sabiam em outro tempo usar uma ferramenta, e que esse conhecimento se perdeu”.
O purismo também tem sua versão contrária à tecnologia digital. Há quem diga que é um erro conceitual até mesmo chamar as máquinas de “câmeras”. Afinal, de câmeras elas não têm nada. O termo se refere à câmera escura responsável por fazer entrar a luz na máquina tradicional, projetando-a no filme. Um processo químico que não existe no reino dos pixels. No mais, as críticas se concentram na questão da qualidade: fotografia analógica tem mais “profundidade e volume”, algo semelhante à perda sentida pelos amantes do vinil em relação à música digital. Mas, em ambas as áreas, os novos suportes não param de se aperfeiçoar, buscando a maior fidelidade possível na reprodução do “real”, seja ele som ou imagem. E as diferenças entre cada suporte podem ser interpretadas como atrativos, não como obstáculo. Cada linguagem propicia possibilidades diferentes. “Tudo tem seu lugar. Adoro foto com celular, ‘pixelizada’. Adoro foto tremida, borrada. O único mal da ‘banalização’ é a falta da consciência do que se quer fazer”, opina Eliane Heeren.
De fato, depois de mais de um século de vivência intensamente audiovisual, é de surpreender que ainda possa haver pruridos quanto a técnicas que, na verdade, nunca pararam de mudar. Em março de 1840, um adolescente de 14 anos deslumbrou-se com o incrível invento que lhe caiu nas mãos: o daguerreótipo. Chegado a tecnologias, fez da fotografia o principal instrumento de registro de sua vida pública. Tornou-se, assim, o primeiro fotógrafo nascido no Brasil, o que, no seu caso, significou mais do que isso. Afinal, meses depois o garoto D. Pedro II se tornava imperador. Em 1851, veio dele a iniciativa inédita no mundo de nomear um fotógrafo oficial, a soldo da Casa Imperial. A rainha Vitória, da Inglaterra, tomaria a mesma medida meses depois. Para se autorretratar, a realeza europeia preferia a sobriedade das pinturas a óleo, com direito a trajes e pompas. D. Pedro, por sua vez, queria construir uma imagem associada ao progresso e à modernidade. Fazia-se retratar sempre em trajes civis e cercado de livros. Para o registro dos rituais monárquicos, aí sim deixava o serviço com os pintores. No livro As barbas do imperador, Lilia Moritz Schwarcz enfatiza a importância da fotografia para a imagem de D. Pedro, e resume bem o espírito daqueles tempos: “A velocidade do daguerreótipo atraía essa sociedade em que a rapidez se transformava em sinônimo de qualidade e progresso. Essa é a época da invenção do telégrafo, do telefone, do motor de explosão, que em seu conjunto foram concebidos visando solucionar a ‘pressa’ do final do século”.
E a fotografia nunca mais saiu de cena, embora radicalmente transformada. Em 1888, um certo George Eastman (1854-1932) foi o primeiro a criar, nos Estados Unidos, um aparelho que já vinha com um rolo de filme de plástico onde as imagens eram gravadas. Depois, era só mandar o filme para revelar em suas lojas. Nascia assim o império Kodak, com o slogan “Você aperta o botão e nós fazemos o resto”. A marca popularizou a produção amadora, despretensiosa, e atravessou o século como sinônimo de imagem. Mas a Kodak já não é a mesma: perdeu sua força diante das novas concorrências digitais.
Sem fotografia não haveria cinema; sem o fascínio audiovisual não haveria TV nem chegaríamos à Internet. Tudo processo histórico, como se vê (e como se vê!). Com a vantagem de não ser via de mão única. Francisco Moreira da Costa que o diga. Ele é um dos poucos brasileiros capazes de manejar uma absoluta novidade tecnológica entre nós. Numa fria madrugada paulistana de 2009, cerca de 60 pessoas se aglomeraram em frente ao Sesc Pompéia, em São Paulo, em busca de uma das oito vagas para sua oficina. Quem chegou às 5h30 perdeu a vaga para os mais madrugadores. Todos ávidos por aprender como montar e usar... o daguerreótipo!
“O que leva as pessoas a quererem aprender uma técnica totalmente inútil?” – é ele mesmo quem se pergunta, surpreso com a demanda. O processo é difícil e com razoáveis chances de dar errado. Utiliza materiais tóxicos (bromo, mercúrio) e caros (prata, ouro). Não pode ser reproduzido: cada imagem é única, gravada em chapa de cobre recoberta por camada de prata. Quando as imagens surgem, vêm com impressionante nitidez, mas normalmente sujeitas a manchas aleatórias. No entanto, “todo mundo curte fazer” suas oficinas. Talvez pelo mesmo motivo que ele: o gosto pela experimentação de uma forma visual diferente. “Estou fazendo uma pesquisa conceitual das imagens, estudando enquadramento, luz, resolução, o que eu puder trabalhar”, explica o daguerreotipista.
O fato é que as imagens não correm o mínimo risco de perder seu posto soberano em nossa civilização. Ao que parece, o trabalho das novas gerações é aprender a selecioná-las, utilizá-las e descartá-las, no meio do oceano que se produz. Dá pra imaginar um mundo sem imagem? Até na etimologia essas palavras são indissociáveis.
Saiba Mais - Bibliografia
HOCKNEY, David. O Conhecimento Secreto. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
Na era do instantâneo
Lorenzo Aldé