Na proa do mundo

Gabriel Passetti

  • Fotografia de Darwin ao lado da ilustração das Geospiza Magnirostris, aves que foram coletadas e estudadas por ele em Galápagos na segunda viagem do HMS Beagle. (Imagens: Biblioteca Linda Hall / Coleção de História da Ciência Wikimédia Commons/Foto J. Cameron)Entre os navios que deixaram seu nome gravado na história está o Beagle – aquele que levou a bordo Charles Darwin na viagem que fundamentou sua revolucionária teoria da seleção natural das espécies. Mas, na época, aquele jovem passageiro estava longe de se tornar figura ilustre. A missão da expedição não era propiciar a Darwin a oportunidade de conhecer regiões diferentes e coletar animais e plantas. Qual foi o motivo, então, para o navio britânico empreender uma verdadeira volta ao mundo na década de 1830? 
     
    A viagem fazia parte de um projeto amplo de mapeamento do planeta executado pela Marinha Real Britânica. Nas primeiras décadas do século XIX, após vencerem Napoleão, os britânicos expandiam rapidamente sua economia, controlavam parcela considerável do comércio internacional e se consideravam o auge da civilização humana. Para eles, era fundamental reunir conhecimento científico sobre as costas de todo o planeta, especialmente nos portos abertos às “nações amigas” e nas regiões em que a navegação era mais difícil. Muitas embarcações cumpriram essa tarefa. Uma delas foi o Beagle.
     
    Ocorrida entre 1831 e 1836, a expedição que levou Charles Darwin sequer foi a primeira realizada pelo Beagle. Ele já havia sido utilizado para uma viagem de mapeamento da América do Sul, que influenciaria diretamente a organização daquela em que Darwin embarcou. Enquanto media os arquipélagos do extremo sul da América, em 1828, o comandante Pringle Stokes, deprimido, cometeu suicídio. Para substitui-lo, foi escolhido um jovem de origem nobre, recém-formado na Real Academia Naval: Robert FitzRoy. Ele finalizou a produção dos mapas e das cartas náuticas da região e voltou com o Beagle à Inglaterra. Levou consigo muitas amostras de animais e plantas, além de quatro indígenas que raptou para transformar em catequistas na Terra do Fogo (extremo sul da Argentina e do Chile). O problema foi que o governo não estava interessado em financiar outra viagem, e ele não sabia o que fazer com os índios. FitzRoy então acionou sua rede de contatos na Corte e no Almirantado, e conseguiu convencer as autoridades a bancar a nova expedição.
     
    Aquela era uma oportunidade única para o jovem rico e ambicioso, que queria colocar seu nome no rol dos grandes navegadores. Com recursos próprios, FitzRoy comprou instrumentos de navegação e mapeamento melhores do que os fornecidos pelo governo. Também contratou um artista plástico e procurou um gentleman que pudesse lhe fazer companhia durante a viagem, além de assumir alguma função na empreitada. FitzRoy buscou especialistas em geologia e ciências naturais e alguns candidatos rejeitaram a proposta por conta do itinerário e do longo tempo de viagem. Pouco antes de o navio zarpar, finalmente, ele encontrou um jovem disposto a participar da aventura e pagar por isso. Era Charles Robert Darwin.
     
    Depois de paradas em Salvador e no Rio de Janeiro, o Beagle seguiu até Montevidéu, porto inicial para o mapeamento das costas. O serviço foi executado até Callao, no Peru, de onde foram para Galápagos e atravessaram o Pacífico, parando ainda no Taiti e na Nova Zelândia. A expedição foi imediatamente reconhecida pelas comunidades científica e náutica devido à quantidade e à qualidade de seus mapas e pelos materiais coletados e enviados à Inglaterra. FitzRoy tornou-se uma referência internacional e foi incentivado a redigir um relato da viagem, publicado em Londres três anos após seu retorno. 
     
    Duas ilustrações das viagens do navio na Bahia e Rio de Janeiro. (Imagens: Biblioteca Linda Hall / Coleção de História da Ciência)Naquela época, um livro deste tipo era tido como um “retrato verdadeiro” das regiões descritas. O comandante colocou no papel suas impressões sobre a América do Sul e seus habitantes, tendo em mente o público leitor: as classes médias e altas britânicas. FitzRoy escreve como um representante do Império Britânico em missão oficial para homens que se viam como a elite política e moral do planeta.
     
    Desde o século XVIII, os britânicos construíram a ideia de que a Grã-Bretanha era a terra da estabilidade política, do uso racional da força, da prosperidade econômica e das liberdades burguesas. FitzRoy tinha essa autoimagem na cabeça quando chegou a uma América do Sul independente há aproximadamente uma década, onde diferentes grupos políticos disputavam o poder dos Estados em construção. O que ele viu foi o oposto do seu ideal, e foi assim que ele retratou a região e seus habitantes. 
     
    Quando o Beagle aportou no Rio de Janeiro em 1832, o sistema político recém-instituído estava em crise por causa da abdicação do imperador D. Pedro I, ocorrida um ano antes. O comandante foi enfático na crítica ao que viu: descreveu sua chegada opondo a clássica imagem da natureza exuberante ao choque por ver marinheiros ingleses desembarcando para ajudar a reestabelecer a ordem pública na cidade. “Poucos estrangeiros visitam as cidades do Brasil sem se desapontar ou até enojar”, escreveu, referindo-se às multidões de negros seminus vagando por vielas estreitas e imundas.
     
    O contraste entre paisagens idílicas e, na ótica europeia, regimes políticos tumultuados em cidades nojentas deveria levar o leitor a concordar que a Grã-Bretanha era a terra da estabilidade e da razão, e que os britânicos eram os únicos capazes de organizar e explorar os territórios de forma decente. Para o comandante, o problema do Brasil e da América do Sul como um todo não estava nas condições naturais, mas em seus habitantes. 
     
    Esta foi a ideia central apresentada por FitzRoy em seu relato da viagem do Beagle. A cada local visitado em território sul-americano, uma crítica à herança da colonização católica. No Brasil, estava à vista a grande chaga da escravidão, combatida pelos britânicos – pautados em uma nova interpretação do cristianismo e nas riquezas vindas do controle do comércio internacional e da Revolução Industrial. Na Argentina e no Chile, regiões em que também se escravizaram os negros, mas onde as relações com os indígenas eram mais evidentes, este foi o foco de suas análises. Os tripulantes do Beagle ficaram horrorizados com a situação dos índios e com o tratamento a eles dispensado. Ao visitar cidades da costa chilena, o comandante descreveu cabanas em que os nativos viviam sem condições de higiene, passando frio e recorrendo a “superstições e feitiçarias”. Para ele, estas eram consequências de séculos de uma colonização espanhola incapaz de civilizar os indígenas e que os deturpou, afastando-os do estado original de “bons selvagens”. Enquanto apontava os males da colonização ibérica, o comandante se omitia sobre a escravização e a morte de indígenas nas ex-colônias da América do Norte (Estados Unidos) e nas ainda existentes (como a Jamaica). 
     
    Os relatos do líder da expedição do Beagle conquistaram um público leitor relativamente grande. Os britânicos estavam ávidos por livros que os levassem a outras regiões do mundo, que contassem aventuras no mar e mostrassem como era a vida nesses lugares. A descrição ficava ainda mais interessante quando evidenciava, por contraste, como era boa a vida dos britânicos, e quando justificava a missão de seu Império em expansão: colonizar e civilizar o planeta, para evitar a repetição dos “erros” cometidos por outros colonizadores.
     
    A jornada do Beagle resultou em numerosas coletas de animais, rochas e plantas, além da produção de livros e teorias. Ao contar para seus conterrâneos como eram a América do Sul e seus habitantes, FitzRoy descreveu o que viu de acordo com o que seus leitores esperavam. Escreveu, enfim, para inglês ler.
     
    Gabriel Passetti é professor de História das Relações Internacionais no Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense, e autor de Indígenas e criollos: política, guerra e traição nas lutas no sul da Argentina (1852-1885), (Alameda, 2012).
     
    Saiba mais:
     
    GERBI, Antonello. O Novo Mundo – história de uma polêmica. Tradução de Bernardo Joffily. São Paulo: Cia das Letras, 1996.
    MARTINS, Luciana de Lima. O Rio de Janeiro dos viajantes: o olhar britânico (1800-1850). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
    PRATT, Mary Louise. Os olhos do Império: relatos de viagem e transculturação. Tradução de Jézio H. B. Gutierre. Bauru: Edusc, 1999.
    TAYLOR, James. A viagem do Beagle: a extraordinária aventura de Darwin a bordo do famoso navio de pesquisa do capitão FitzRoy. São Paulo: Edusp, 2009.