“O rei de Espanha e o rei de Portugal partilharam entre eles o Novo Mundo; eu gostaria de ver o artigo do testamento de Adão que lhes lega a América!” A frase, atribuída a Francisco I (1494-1547), rei da França, resume o que sentiam os franceses diante das imposições do Tratado de Tordesilhas, assinado em 1494, que partilhava a posse das novas terras entre os reinos português e espanhol. Outra excluída dessa partilha, a rainha Elisabeth I (1533-1603), da Inglaterra, promoveu uma agressiva política de expansão marítima que atingiu também o Brasil, riscando nas rotas marítimas uma nova configuração política.
Os relatos das viagens inglesas pelos mares, que então eram exclusivos dos navios ibéricos, foram publicados em duas grandes coletâneas, organizadas por Richard Hakluyt (1552-1616) e Samuel Purchas (1577-1626). Nelas estão registradas várias incursões ao Brasil, que são hoje praticamente desconhecidas. Das mais de 20 viagens, relatadas por 34 autores, somente uma delas foi traduzida para o português: a incrível aventura do jovem Anthony Knivet, que passou dez anos no Brasil como escravo e serviçal da família Correia de Sá, na época governadores da capitania do Rio de Janeiro.
A presença inglesa no Brasil durante o nosso primeiro século é um capítulo pouco conhecido da nossa história. As narrativas escritas por membros das tripulações inglesas talvez tenham chamado pouca atenção porque, ao contrário dos franceses e holandeses que estiveram no Brasil em períodos bem delimitados, a atuação inglesa tem uma história descontínua. Seu assédio às costas brasileiras foi irregular e inconstante, sendo interrompido pela guerra entre Inglaterra e França na década de 1540, e depois retomado com novo ímpeto no reinado de Elisabeth I. Podemos dividir a atuação inglesa no Brasil no século XVI em três períodos: primeiro, o de reconhecimento geográfico; segundo, o de comércio pacífico com os índios; e o terceiro, que se iniciou com a tentativa de comércio com os colonos, prosseguindo com a ação beligerante de corsários.
Inicialmente, sem os conhecimentos de Geografia e de navegação adquiridos pelos ibéricos, os ingleses precisaram se associar a viagens comerciais espanholas. É por meio dessa parceria que se dá a primeira viagem ao Brasil com a participação de ingleses. Em 1526, sai de Sanlúcar de Barrameda, no sul da Espanha, uma frota de 5 embarcações e cerca de 200 tripulantes com destino as Spice Islands (Ilhas das Especiarias), as Molucas, um arquipélago localizado na atual Indonésia. Mas o impetuoso comandante Sebastião Caboto (1476-1557), ao passar pelo Brasil e ouvir rumores sobre pedras preciosas no continente, altera o destino da viagem. Permanece quatro anos em explorações infrutíferas pelo Rio da Prata e pelo Rio Paraná em busca de riquezas minerais. Em sua frota estavam dois ingleses, homens versados em Geografia, o mercador Roger Barlow e o piloto Henry Latimer, que tinham a missão secreta de obter informações estratégicas para os comerciantes ingleses radicados na Espanha.
Roger Barlow narrou com detalhes a viagem de exploração pelo Rio Paraná no primeiro livro inglês sobre o Novo Mundo, a Breve Suma de Geografia, cujo manuscrito foi oferecido ao rei inglês Henrique VIII (1491-1547) em 1540. Trata-se de uma das primeiras descrições do território brasileiro sobre a terra, a fauna, a flora e os povos. Barlow maravilhou-se com o território: “Há muitas bestas selvagens e pássaros, e diversas outras estranhas bestas de boa carne e bom sabor e muita quantidade de peixes que eles matam com flechas na água, que para descrever as estranhas castas de peixes que há nesta costa e as estranhas bestas e pássaros que habitam a terra seria um tal trabalho que renderia um outro livro”.
Após o primeiro período de exploração, começou uma fase de comércio pacífico com os índios, atividade com que os franceses também obtinham grande lucro nas costas brasileiras. Há notícias de três lucrativas viagens ao Brasil do comerciante e navegador William Hawkins, que armou por conta própria o navio Paul of Plymouth e estabeleceu relações cordiais com os índios. Em sua segunda viagem, o comandante levou um ‘rei’ indígena para a Inglaterra, que, ao chegar a Londres, foi apresentado à corte e ao rei Henrique VIII, causando sensação com os adornos faciais de pedras e ossos incrustados na pele.
O terceiro período das viagens inglesas ao Brasil aconteceu quando a Espanha de Felipe II (1527-1598) e a Inglaterra da rainha Elisabeth se enfrentaram em guerra aberta, especialmente após a viagem de Francis Drake (1540-1596), iniciada em 1577. Herói para os ingleses e vilão para os espanhóis, Drake abriu caminho pelo Atlântico Sul e pelo Pacífico, saqueando galeões espanhóis e atacando vilas e portos. A partir daí, o antagonismo entre as duas coroas se radicalizou.
O Brasil passa a fazer parte desse confronto quando Portugal, que sempre fora aliado político da Inglaterra, perdeu a sua autonomia. Em 1580, após a crise iniciada pela morte de D. Sebastião em Alcácer Quibir [no norte da África, em campanha contra os muçulmanos], Felipe II se tornou também o rei de Portugal e, consequentemente, da colônia americana.
Uma das viagens mais interessantes desse período foi a do navio Minion of London, em 1581, de caráter comercial. A embarcação chegou a Santos, na capitania de São Vicente (atual Estado de São Paulo), e foi muito bem recebida pelas autoridades locais. O embaixador espanhol em Londres, D. Bernardino de Mendonça, informado por seus espiões da chegada no navio ao Brasil, escreveu repetidas cartas a Felipe II, indignado com a boa acolhida aos ingleses. Enquanto o embaixador pedia ao rei que tomasse providências firmes, o Minion of London vendia suas mercadorias pacificamente no Brasil e recebia em troca o valorizado açúcar brasileiro. A embarcação inglesa chegou abarrotada de fitas de veludo, chapéus, tecidos de várias espécies e preços, vestidos, camisas, louças, vinhos, ferramentas e materiais para a construção de navios e de engenhos, e passou seis meses em Santos.
Curiosamente, o motivo para que saíssem de Santos não foi político, mas religioso. Acusados de hereges, os ingleses precisaram fugir às pressas para a Bahia, na tentativa de escoar o resto de suas mercadorias. Em Salvador, a história acabou tomando um rumo inesperado. Um dos pilotos ingleses, Edward Cliffe, para espanto de todos, entra para a Companhia de Jesus. Outros três tripulantes abandonam a frota e se estabelecem na vila com suas mercadorias. O jesuíta inglês recém-convertido acaba criando problemas religiosos para seus compatriotas, e o Minion foge às pressas para a Inglaterra sem angariar todo o lucro que pretendia.
Esta seria a última viagem pacífica ao Brasil. As incursões seguintes foram francamente voltadas para ações de pirataria. Em 1592, o almirante Thomas Cavendish, ao passar pelo Brasil, ataca o porto de Santos e toma posse da vila, onde permanece por alguns meses. Um dos tripulantes de sua frota, o jovem Anthony Knivet, é abandonado em uma praia deserta e vive cerca de dez anos no Brasil. Ao voltar para a Inglaterra, Knivet escreve um dos mais impressionantes relatos sobre o Brasil Colônia, publicado somente em 1626, em que narra cruamente as expedições de extermínio de índios das quais tomou parte.
Com poucas forças de segurança e portos desprotegidos, a Colônia parecia um bom negócio para os corsários ingleses, que agiam com a autorização da rainha. Houve pelo menos duas viagens especialmente planejadas para atacar e saquear portos brasileiros. Em 1587, uma frota armada pelo conde de Cumberland (1558-1605) passa quatro meses pilhando e aterrorizando o Recôncavo Baiano, incendiando engenhos e enfrentando colonos e índios. A esquadra volta para a Inglaterra com grandes ganhos financeiros. Três anos mais tarde, será a vez da rica vila do Recife, em Pernambuco. O célebre almirante James Lancaster (1554-1618), pioneiro das viagens inglesas à Índia, passa um mês saqueando a vila e as naus ancoradas no porto. A pilhagem foi tão grande que Lancaster alugou 14 navios holandeses, que estavam no porto do Recife, para levar as mercadorias para a Inglaterra.
Exploradores, navegadores, comerciantes ou corsários, os ingleses que passaram pelo Brasil no primeiro século de nossa história relataram sua experiência com tintas fortes. Alguns relatos são carregados de beleza, como a narrativa de Roger Barlow, outros matizados da mais crua violência, como os ataques à Bahia e a Pernambuco, que nos mostram o Brasil como palco de verdadeiros filmes de aventura.
Sheila Moura Hue é professora visitante da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e autora da edição comentada de As incríveis aventuras e os estranhos infortúnios de Anthony Knivet (Zahar, 2007).
Saiba Mais - Bibliografia
BERGER, Paulo. GUEDES, Max Justo. WINZ, A. Pimentel. Incursões de Corsários e Piratas na Costa do Brasil. In: GUEDES, Max Justo. História Naval Brasileira. vol. I, tomo II. Rio de Janeiro: SDGM, 1975.
CALMON, Pedro. Brasil. Defesa da Unidade Nacional Contra a Fixação Estrangeira. Século XVI. In: BAIÃO, A. et al. (ed.). História da Expansão Portuguesa no Mundo. vol. III. Lisboa: Ática, 1940.
HUE, Sheila Moura. Ingleses no Brasil: relatos de viagem. Anais da Biblioteca Nacional, n.126, 2009.
Na rota da pilhagem
Sheila Moura Hue