Nada de castigo

Antonietta d’Aguiar Nunes

  • Castigar para disciplinar: assim as escolas europeias do século XVI educavam seus alunos. Quando o estudante errava, eram aplicadas punições, como palmadas – com a mão ou palmatória –, o recolhimento num canto da sala ou ainda a obrigação de escrever várias vezes uma frase sobre o erro cometido. Os missionários jesuítas tentaram catequizar os índios do território tupiniquim e logo perceberam que essas práticas não funcionariam. Isso porque, em matéria de educação, os nativos eram muito pacíficos, de modo que desconheciam os castigos.

    Essas informações estão nos depoimentos dos europeus que entraram em contato com os índios. Foram deixados registros, escritos por missionários catequizadores, por colonos que tiveram contato amigável ou por quem tivesse sido levado como prisioneiro para as aldeias. Há relatos como o do protestante francês de Jean de Léry (1534-1611) e do alemão Hans Staden (1525-1579). Os jesuítas Manuel da Nóbrega (1517-1570), José de Anchieta (1534-1597) e Antônio Vieira (1608-1697) também escreveram obras que se tornaram referências nesse assunto.

    Por esses escritos, é possível saber que o aprendizado das crianças se dava por meio dos cuidados dos mais velhos e de brincadeiras com companheiros, normalmente do mesmo sexo. Nesses grupos, era normal a imitação do que faziam os adultos e os mais idosos. Os curumins eram separados de acordo com a idade: recém-nascidos até começarem a andar; crianças pequenas, até sete ou oito anos; desse período até os 15 anos; jovens entre 15 e 25; adultos dos 25 aos 40, e idosos, de 40 anos ou mais.

    Devido à grande dependência materna, os recém-nascidos tinham a mãe como mentora dos primeiros comportamentos, além de principal fonte de conforto, alimento e segurança. Ela os lavava, deitava em pequenas redes e os alimentava com seu leite e com grãos de milho já mastigados e amassados com saliva antes de pôr na boca dos bebês índios, de modo semelhante ao que fazem os pássaros com sua prole. Quando iam trabalhar, costumavam levar os filhos presos ao próprio corpo com um tipo de tipoia.

    Um pouco mais crescida, a criança ria e brincava no colo da mãe, que lhe dava comida na mão para ser levada à boca. Quando andavam bem sozinhas, embora pudessem mamar o quanto quisessem, começavam a comer alimentos dos adultos. Recebiam arcos e flechas proporcionais ao tamanho diminuto e formavam grupos com outras crianças. Por meios informais, adestravam-se no uso do arco e flecha, aprendiam as danças e os cantos dos adultos. As meninas ajudavam as mães na fiação de algodão e as imitavam fazendo pequenos potes e panelas de barro.

    Em algumas tribos, nessa fase havia a cerimônia de perfuração dos lábios, uma espécie de rito de passagem, quando os meninos tinham entre quatro e seis anos. Após festas que duravam três dias, diziam à criança que ela seria perfurada para que se tornasse um guerreiro valente e prestigiado. Para isso, deveria permitir espontaneamente que a furassem com um osso pontiagudo, e suportar a dor.
    Na pré-adolescência – dos sete aos 15 anos –, os rapazes e as moças acompanhavam os pais no trabalho, aprendendo com eles o necessário para a vida na comunidade: caçar, pescar, mariscar, semear e plantar, fabricar farinhas, fazer bebidas e preparar a comida. Na adolescência propriamente dita – 15 a 25 anos –, os rapazes já se integravam na realização do trabalho, conduziam canoas para a guerra, prestavam serviços variados e ouviam histórias dos mais velhos sobre os feitos dos heróis ancestrais, conhecendo os mitos do grupo. Enquanto isso, as moças ajudavam as mães nos serviços domésticos, auxiliando também no trato com os mais idosos, com quem aprendiam muito.

    Depois que terminavam o ritual, esses índios tinham que se virar sozinhos na floresta e conseguir alimentos, caçar, pescar, defender-se dos animais selvagens, ou iam à guerra e derrotavam algum guerreiro. Ultrapassadas essas etapas, eram considerados adultos e passavam a viver plenamente na comunidade.

    Em nenhum momento de todo esse processo havia punição: o resultado de um erro cometido por si só já era considerado suficiente para indicar que aquilo não deveria ser feito novamente. O aprendizado dos grupos indígenas era solidário e cooperativo, muito distinto da educação europeia, que era mais disciplinada, competitiva e punitiva.

    A ausência de punição foi, de fato, um dos fatores que geraram desentendimento entre os índios e os jesuítas. Os religiosos tinham nos colégios urbanos uma grande preocupação com disciplina, punição pelos erros e estímulo de competição entre os alunos, métodos que – logo constataram – não poderiam ser empregados nos colégios dos jesuítas, sob pena de fracassar o projeto de evangelização. Quando queriam aplicar um castigo, os jovens se afastavam, recebendo apoio dos pais. Essa foi uma das causas do despovoamento das primeiras aldeias administradas: os índios voltavam às suas tribos, onde aprendiam sem qualquer tipo de repreensão.

    Diante dessa reação, os jesuítas precisaram modificar as práticas educativas ao fundar novas aldeias. Deixaram de utilizar castigos físicos e investiram na motivação dos alunos por meio da música, do teatro, das representações de passagens bíblicas e das vidas de santos. Dessa forma, mostravam os comportamentos que consideravam mais adequados, produtivos e piedosos, que os indígenas deveriam imitar.

    Antonietta d’Aguiar Nunes é professora da Universidade Federal da Bahia e autora da tese “Política Educacional no início da República na Bahia: duas versões do projeto liberal” (Faced/UFBA,2003).

    Saiba Mais - Bibliografia

    CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia
    das Letras/Secretaria Municipal de Cultura, 1992.
    FERNANDES, Florestan. A organização social dos Tupinambá. São Paulo: Hucitec/Brasília:
    Ed.UnB, 1989.
    MELATTI, Julio Cezar. Índios do Brasil. São Paulo: Hucitec/Brasília: Ed.UNB,1987.
    PROUS, André. O Brasil antes dos brasileiros. A Pré-História do nosso país. Rio de
    Janeiro: Jorge Zahar, 2006.