Nada de intérpretes

Lia Ramos Jordão

  • Imagem da catequização na região de Angola.

    O título da publicação pode até dar margem a interpretações maliciosas para os apressados. O Diccionario da lingua bunda, ou angolense explicada na portuguesa e latina está muito bem guardado na Divisão de Obras Raras da Biblioteca Nacional. A obraescrita pelo missionário capucho italiano Bernardo Maria de Cannecattim foi publicada em 1804 pela Impressão Régia em Lisboa.

    O autor, que viveu na África em missão religiosa por mais de 20 anos, tornou-se estudioso e conhecedor da então chamada língua bunda, também conhecida como nbunda – segundo ele, termo incorreto. O idioma era o mais falado pelos nativos da região da Angola, terras habitadas pela “populosa nação dos Ambundos” e almejada pelo Império português desde o final do século XV. Ainda hoje é possível reconhecer o idioma como parte da matriz linguística e étnica banto, que sobrevive com força apesar dos séculos de dominação portuguesa. Com o tempo, a designação “bunda” passou a ser evitada pelos especialistas, talvez em função da carga pejorativa associada ao termo. Hoje, entre os idiomas banto mais falados em Angola, destacam-se o quimbundo e o umbundo.

    A carga pejorativa é notada quando constatamos que durante muito tempo as publicações a respeito desta língua foram exclusividade dos europeus, monopolizadores do discurso escrito, e, portanto, atravessadas pelo preconceito e pela justificativa da lógica colonial.

    O dicionário, o primeiro a traduzir uma língua africana para o português, mostra sem pudor o extremo do eurocentrismo dos tempos coloniais. Na introdução, o autor quase pede desculpas por estar explorando um tema referente a uma “nação inculta e não civilizada”, em detrimento das “línguas sábias que são um depósito riquíssimo dos progressos do espírito humano”. Cannecattim justifica para os europeus reinóis que “o seu conhecimento [da língua bunda] não deixa de ser utilíssimo à prática, e dilatação do Cristianismo nos vastos Países, em que ela se fala, e ao comércio, e interesses políticos de uma das mais importantes colônias deste Reino”.

    Ainda de acordo com o frade, é fundamental não depender dos intérpretes para a pregação religiosa. Estes são “negros do País, gente bruta, que ignora da sua própria Língua uma grande parte, e que da Portuguesa apenas sabe os termos mais vulgares (...), de que pode resultar o ensinar erros substanciais”. E mais: seriam “negros venais” que podiam deturpar a comunicação – ou por desconhecimento das línguas envolvidas ou ainda por corrupção. Cannecattim lembra que todas as representações feitas pelos nativos ao governo, assim como os processos civis e criminais, são traduzidas por intérpretes que, se estiverem “apaixonados ou vencido contra qualquer litigante”, podem comprometer a Justiça.  No ramo do comércio impera a mesma lógica: depender de intérpretes locais pode significar maus acordos comerciais e prejuízo para a Fazenda.

    O dicionário tem uma particularidade: traduz a partir do português (língua do governo) para o latim (língua oficial católica) e, em sequência, para a língua nativa. Mas o contrário não é disponibilizado. Ou seja, facilita o aprendizado da língua local pelo colonizador, mas não se preocupa com a possibilidade de o africano recorrer ao dicionário para aprender o português. Neste caso, ele teria que saber ler e buscar em 700 páginas, no campo traduzido, que não tem ordenamento alfabético, a palavra conhecida, para enfim encontrar a sua tradução.

    No livro é grande a presença de vocábulos e expressões idiomáticas necessárias à catequese, como “orar”, “fé”, “pecado” e “adultério”; relativas ao comércio, como “negociar”, “preço”, “cordão de ouro” e “escravo”; e termos políticos, como “governo”, “polícia” e “justiça”. A seleção de palavras e expressões mostra a intenção de apoiar o trabalho de conquista na religião, na política e no comércio. E, para complementar a tarefa, o autor opta por traduzir também palavras características da subserviência, como Cuandála, que em português quer dizer “abaixar a cabeça significando sim”. Afinal, expressões como esta poderiam ser úteis na tarefa da colonização. Trata-se do clássico: “conhecer para dominar”.