Terra “pantanosa, de nula serventia, dominada pela malária e longe do mundo”. Assim o Engenho da Preguiça, no litoral norte da Paraíba, foi descrito por Artur de Góes no início do século XX. Mas, em pouco menos de dez anos, essa paisagem foi radicalmente transformada. O mangue deu lugar às chaminés, o silêncio foi rompido pelo barulho das máquinas e as estradas diminuíram as distâncias. Era o mais novo projeto empresarial da família Lundgren: a instalação de uma das maiores fábricas têxteis da América Latina num canto até então esquecido do Brasil.
A trajetória da família no país teve início em 1855, quando o jovem sueco Herman Lundgren (1835-1907) desembarcou aqui para tentar construir uma nova vida. Depois de fundar vários empreendimentos, como a fábrica de pólvora Pernambuco Powder Factory S/A, em 1904, aventurou-se na compra de um pequeno estabelecimento, a Fábrica Paulista, localizada na zona metropolitana do Recife. Ela acabou se transformando numa das mais importantes manufaturas de tecidos do país, graças à aquisição de um maquinário inglês moderno. Após a morte de Herman, a administração da fábrica passou para seu filho, Frederico João Lundgren (1879-1946).
A prosperidade do negócio fez com que Frederico Lundgren decidisse ampliar os investimentos da família no setor têxtil e construir uma nova fábrica. Assim nasceu a Companhia de Tecidos Rio Tinto. A escolha do lugar, tão isolado, foi motivada pelo preço baixo das terras do engenho de fogo morto (desativado), a disponibilidade de matéria-prima – o algodão nordestino – e de mata para alimentar as caldeiras, a proximidade de rios navegáveis com saída para o mar e, sobretudo, a isenção de impostos estaduais, concedida pelo governo paraibano, por 25 anos.
Em um terreno de 600 quilômetros quadrados, com máquinas modernas trazidas da Europa, a Companhia de Tecidos Rio Tinto foi inaugurada em 27 de dezembro de 1924. Uma multidão de mais de cinco mil espectadores, políticos e jornalistas, compareceu e ficou encantada com a transformação da “sonolenta” Preguiça na “ativa colméia operária de Rio Tinto”, como escreveu Ademar Vidal no prefácio do livro Um sueco emigra para o Nordeste, do político, jornalista e escritor Raul de Góes (1907-1994).
Mas para fazer funcionar aquela indústria, localizada no município de Mamanguape, era preciso mão de obra. Então, a empresa contratou “agenciadores”, que percorreram o Nordeste em busca de famílias camponesas dispostas a trabalhar. Quando as ofertas de emprego e de moradia não eram suficientes, prometia-se que as torneiras em Rio Tinto jorrariam leite em vez de água. Ao chegarem à cidade, os operários eram “inspecionados” pelo próprio Frederico Lundgren, que, observando critérios de força, forma física, idade e sexo, determinava a ocupação de cada um: por exemplo, os mais fortes iam para a tecelagem, os mais fracos para a seção de acabamento de panos. As posições técnicas e de direção ficavam para os trabalhadores europeus, principalmente alemães.
Embora fosse um distrito da cidade de Mamanguape, Rio Tinto era, de fato, uma vasta propriedade privada planejada para ser autossuficiente. O transporte era facilitado por uma ferrovia particular e a energia era fornecida por uma central termelétrica da própria fábrica. Havia ainda uma olaria, um moinho e uma carpintaria.
O traçado da vila operária representava o modelo de organização planejado por Frederico Lundgren. A arquitetura das casas refletia a hierarquia fabril. Os operários menos especializados ocupavam as casas mais simples, geminadas, com dois ou três quartos, sala e cozinha, sem luz elétrica ou água encanada. Os mestres tinham direito a moradia com iluminação a gás. As residências mais confortáveis eram os chalés dos técnicos de alto nível e dos chefes de setores, com jardim frontal, luz elétrica e água encanada. O edifício mais luxuoso, chamado de palacete, era o que abrigava a família Lundgren em suas passagens por Rio Tinto: tinha três andares e um rico mobiliário, tapetes italianos, lustres e azulejos decorados.
Além das 2.600 casas contabilizadas no final dos anos 1940, na vila operária havia farmácia, hospital, escolas e barracão para compra de alimentos. Os trabalhadores de Rio Tinto recebiam privilégios considerados incomuns para o interior nordestino da primeira metade do século XX, com várias opções de lazer. Eles podiam ir ao cinema ou participar de passeios à praia, custeados pela fábrica. Também contavam com atividades introduzidas pelos moradores estrangeiros, como tênis, boliche e turfe.
Todas essas vantagens, no entanto, escondiam uma prática de disciplinamento das relações entre trabalhadores e patrões. Ao criar uma percepção da fábrica como a “mãe” protetora dos trabalhadores, ficava mais fácil controlar os operários. O objetivo era diminuir as reivindicações trabalhistas, inibir a formação de uma consciência de classe e incentivar uma maior produtividade. Os benefícios serviam também para esconder a exploração dos operários, que eram pagos por peça produzida e não recebiam salário fixo, práticas frequentes devido à inexistência de um salário-mínimo determinado por lei.
O controle social, facilitado pela localização rural e pelo isolamento, era posto em prática pelo corpo de vigias da fábrica, responsável pelo policiamento. Havia até mesmo uma guarita para controlar o acesso à vila. Só permanecia em Rio Tinto quem recebesse autorização da empresa. O controle se dava também no âmbito político. Em 1956, Rio Tinto foi emancipada de Mamanguape, e teve Arthur Lundgren como seu primeiro prefeito. Os Lundgren eram verdadeiros “coronéis” da indústria.
Em pouco tempo, a Rio Tinto tornou-se uma das maiores empresas têxteis da América Latina. A fábrica produzia tecidos diversos, como brins e tricolines, entre outros, vendidos nas lojas dos Lundgren, as Casas Pernambucanas. Devido à existência desta grande rede, com filiais em todo o país, a família não teve dificuldades em atingir o mercado das outras regiões.
O sucesso da fábrica, apoiado no prestígio dos Lundgren, motivou a ida do presidente Getulio Vargas a Mamanguape, em 10 de setembro de 1933. Para receber o ilustre convidado, Frederico Lundgren mandou caçar tatus, pacas e cotias nas matas de Rio Tinto para preparar um grande banquete. Do encontro resultou um contrato de fornecimento do tecido azul de algodão – mescla azul – utilizado para os uniformes da Aeronáutica e brim branco para a Marinha, e, posteriormente, do tecido cáqui para o Exército.
A partir dos anos 1940, a companhia de tecidos começou a enfrentar dificuldades. Com a morte de Frederico Lundgren em 1946, seu irmão Arthur assumiu a direção e procurou mudar os mecanismos gerenciais, suprimindo muitos dos benefícios anteriormente concedidos aos operários, como a moradia e alimentação a custo baixíssimo. Os trabalhadores reagiram organizando greves e recorrendo à Justiça do Trabalho para exigir o cumprimento dos seus direitos. O maquinário também ficou ultrapassado. Em 1960, a maioria dos teares da fábrica datava do período entre 1890 e 1930, causando uma baixa produtividade, custo alto de produção e tecidos de menor qualidade.
Aos problemas internos somavam-se as mudanças trazidas pelo Estado Novo (1937-1945). A Consolidação das Leis do Trabalho (1943) – que introduziu o salário-mínimo, por exemplo – dificultou a manutenção da gestão “coronelista”. Além disso, a construção de estradas que integraram o país trouxe a concorrência de produtos do Sul e do Sudeste.
O reinado dos Lundgren estava com os dias contados. A fábrica foi sendo desativada aos poucos e fechou definitivamente no final da década de 1980. Entretanto, a presença dessa companhia de tecidos ainda se faz sentir em todos os cantos de Rio Tinto. Ela está em seu traçado urbano, em sua arquitetura e na memória dos antigos trabalhadores.
Saiba Mais - Bibliografia
GÓES, Raul de. Um Sueco Emigra para o Nordeste. Rio de Janeiro: José Olympio, 2ª edição, 1964.
MARCOVITCH, Jacques. Pioneiros e empreendedores: a saga do desenvolvimento no Brasil. São Paulo: EdUSP, 2005, vol 3.
PANET, Amélia; MELLO, José Octávio de A. et al. Rio Tinto: Estrutura Urbana, Trabalho e Cotidiano. João Pessoa: Unipê Editora, 2002.
Saiba Mais - Internet
História das Lojas Pernambucanas
www.pernambucanas.com.br/loja/100anos/
Nada de preguiça
Carolina Lucena Rosa