Não ouse parar

Gustavo S. Siqueira

  • Não existe direito mais complexo na história recente brasileira do que o direito de greve. O tema sempre suscitou debates apaixonados, questionamentos e indignações.
     
    Nos dicionários que circulavam no início do século XX, a greve era descrita como um “conluio legal”: uma ação para prejudicar pessoas, mas permitida por lei. A descrição explica muito da realidade daquele período. O Código Penal de 1890 havia criminalizado a greve, fosse ela pacífica ou violenta, mas a medida gerou uma explosão de paralisações de trabalhadores em protesto. No mesmo ano, o governo republicano voltou atrás e alterou o texto, mantendo como crime apenas a greve que recorre à violência contra pessoas ou objetos.
     
    Pelo sistema legal da Primeira República, portanto, a greve pacífica era um direito do trabalhador, reconhecido pelos tribunais e até em manifestações do Poder Executivo, de políticos e de algumas empresas. Nem por isso deixou de ser brutalmente combatida. Bastava que fosse contrária aos interesses econômicos dos donos de fábricas, empresas ou estabelecimentos comerciais para que a força policial entrasse em cena, obrigando os trabalhadores a voltarem ao serviço. Neste caso, criminosa era a atuação do Estado, em conjunto com os atores prejudicados pela paralisação.
     
    O discurso era oposto à realidade. O argumento usado para o combate à paralisação de 1906, uma greve de ferroviários que cessou o transporte de café e de pessoas por 30 dias, por exemplo, repetiu-se em outras ocasiões: as empresas e a polícia alegavam não questionar o direito do trabalhador, e justificavam a mobilização da força apenas para combater os grevistas violentos, criminosos, e para proteger o patrimônio público e privado. Era uma brecha para que a força armada do Estado atuasse contra todos. Na greve daquele ano, além das prisões, trabalhadores foram mortos, expulsos de suas casas e do país, e alguns colocados em navios em direção à região Norte para servirem de mão de obra forçada na crescente extração da borracha.
     
    Polícia carioca dispersando grevistas na Capital Federal, em 1917. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)A repressão não diminuiu a ampla demanda por direitos e garantias trabalhistas, lugar comum no final da Primeira República e no início do governo Vargas. As greves continuaram acontecendo no país e a discussão sobre seu reconhecimento legal voltou à tona nos debates da Assembleia Constituinte entre 1933 e 1934. O direito de greve deveria figurar na Constituição? Os defensores da proposta alegavam que esse direito já era reconhecido, não podia ser negado a quem trabalha e, se estivesse presente no texto constitucional, a polícia iria respeitá-lo. Para embasar sua posição, usavam o exemplo de países europeus onde a greve era regulada. Os partidários da não inclusão argumentavam que a Justiça do Trabalho – que estava sendo criada naquela Constituição – seria o lugar para dirimir os conflitos entre patrões e empregados, e que não seria possível legitimar um direito de resistência que anularia tal Justiça. De qualquer forma, não se colocava em questão a existência do direito de greve, apenas se deveria ser constitucionalizado. No fim das contas, por 99 votos contra 82, o tema não foi incluído no texto da Constituição de 1934.
     
    Tempos sombrios estavam por vir para os trabalhadores. Em abril de 1935, a Lei de Segurança Nacional – que ficaria conhecida como “Lei Monstro” pelo excesso de crimes e de punições que trazia – criminalizou a greve de uma forma inédita. Passaram a ser crimes a instigação e a paralisação de serviços públicos e de abastecimento da população por motivos não ligados às condições de trabalho. Greves por motivos políticos, ideológicos ou por solidariedade a outros grupos de trabalhadores também se tornaram ilegais, mesmo sendo pacíficas. A única forma de greve não criminalizada foi aquela pacífica e motivada pelas condições de trabalho. Na prática, pouco importava se a paralisação estava ou não dentro da lei: ao menor sinal de greve, o aparato policial era acionado. 
     
    Com o golpe do Estado Novo, a Constituição de 1934 é rasgada e uma nova é outorgada por Getulio Vargas em 10 de novembro de 1937. Pela primeira vez, a  greve entra em um texto constitucional brasileiro, e de forma negativa: considerada um recurso antissocial, nocivo ao trabalho, ao capital e aos interesses da produção nacional. A forte repressão da ditadura e o processo de cooptação dos sindicatos conseguiram  reduzir significativamente o número de paralisações de trabalhadores. Parte da historiografia brasileira chega a afirmar que não existiram movimentos grevistas no Estado Novo, embora algumas pesquisas recentes questionem esta hipótese, revelando, por exemplo, paralisações de operários de fábricas em São Paulo e Santa Catarina em 1941, ou de ferroviários no Paraná em 1943.
     
    Enquanto várias novas leis eram criadas para criminalizar as greves, nos dicionários elas passam a ser descritas apenas como conluio, não mais como um ato legal. As publicações se limitam a acompanhar as mudanças legislativas, sem questionar ou fazer referência aos conceitos que emolduravam o vocábulo no passado. Assim também agiam os juristas do período, em obras que aceitam passivamente a assertiva legal. 
     
    Com o fim do Estado Novo (1945), uma nova Constituição era necessária. Durante a  Assembleia Nacional Constituinte de 1946, acontece no país uma série de paralisações de trabalhadores, que passa a ser relatada e discutida nas reuniões. Antes mesmo do debate sobre a inclusão do direito de greve no texto constitucional, os parlamentares abordaram dezenas de vezes o tema, incluindo a violência policial e a atuação dos governos estaduais e federal. Em um país recentemente saído de uma ditadura, todos os ambientes eram propícios para discussões políticas. Parecia existir um discurso unívoco de que o direito de greve deveria estar na Constituição. A questão a ser resolvida era de que forma isso aconteceria. 
     
    Polícia carioca dispersando grevistas na Capital Federal, em 1917. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)As forças de esquerda, capitaneadas pelo Partido Comunista do Brasil (PCB), defendiam que o texto apenas reconhecesse esse direito, sem lhe impor limitações. De outro lado, um grupo liderado pela União Democrática Nacional (UDN) propunha a garantia do direito mas com “as limitações impostas” por uma lei posterior que fizesse sua regulação. Para a UDN, a Constituição não deveria conferir maior liberdade jurídica para a realização de greves. Venceu a segunda proposta e, pela primeira vez em uma Constituição brasileira, a greve foi legitimada como um direito. O verbo utilizado pelo artigo constitucional foi justamente “reconhecer”: a lei maior brasileira enfim abordava um direito que há tempos era palco de luta dos trabalhadores. No mesmo texto, foi aprovada a anistia aos grevistas que sofreram penas disciplinares nos anos anteriores. Mas nem o reconhecimento constitucional impediu que violenta repressão, novamente ilegal, fosse empregada nas greves seguintes. 
     
    A curta mas complexa história da greve na primeira metade do século XX nos lembra da dificuldade de uma sociedade em aceitar determinados direitos – que são forjados em um processo de luta por reconhecimento legal, ou pelo cumprimento da lei. Dentro ou fora dos textos jurídicos, o direito de greve sempre precisou de luta para ser respeitado.
     
    O fato é que se trata de um direito incômodo, mas essencial para a defesa dos trabalhadores. É um direito que ajuda a proteger outros direitos. Negar a greve é negar os princípios de um Estado de Direito e da República. Não foi por acaso que, em junho de 1964, pouco após o golpe militar, o governo promulgou uma lei trazendo novas limitações ao direito de greve. Nas ruas, no Parlamento e nas empresas, a luta dos trabalhadores estava longe de ter fim. 
     
    Gustavo S. Siqueira é professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pesquisador da Fundação Biblioteca Nacional e autor de História do Direito pelos Movimentos Sociais (Lúmen Juris, 2014).
     
    Saiba mais
     
    LEME, Dulce Maria Pompeo de Camargo. “Hoje ha? ensaio: a greve dos ferrovia?rios da Cia Paulista – 1906”. Dissertac?a?o de Mestrado em Sociologia, Unicamp, 1984. 
    MORAES, Evaristo de. Apontamentos de direito operário. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1905.
    ZAMBELLO, Marco Henrique. “Ferrovia e memo?ria: Estudo sobre o trabalho e a categoria dos antigos ferrovia?rios da Vila Industrial de Campinas”. Dissertac?a?o de Mestrado em Sociologia, USP, 2005.