Nas entrelinhas da lição

Rita de Cássia Cunha Ferreira

  • Ao abrirem os seus livros didáticos, numa escola em qualquer ponto do Brasil, as crianças do Estado Novo teriam acesso a um conteúdo filtrado e pré-selecionado “por cidadãos de notório preparo pedagógico e reconhecido valor moral”. Isto se a Comissão Nacional do Livro Didático (CNLD) conseguisse cumprir a missão para a qual foi criada. Esta engrenagem de censura prévia da ditadura de Getulio Vargas teve, porém, uma existência curta e tumultuada.
     
    Publicado em dezembro de 1938, o decreto-lei n° 1.006 estabeleceu as condições de produção, autorização e utilização dos livros escolares. A partir de 1º de janeiro de 1940, nenhum livro didático poderia ser adotado no ensino das escolas pré-primárias, primárias, normais, profissionais e secundárias do país sem autorização prévia do Ministério de Educação e Saúde, inclusive os editados pelos poderes públicos.
     
    Os livros didáticos sempre foram objeto de atenção por parte dos poderes públicos, mas a CNLD foi a primeira responsável pelo controle ideológico e pedagógico da produção. O crescimento econômico e a industrialização deram origem a novas camadas urbanas que exigiam do poder público o acesso à escolarização. Presentes no cotidiano dos alunos, pais e professores, os livros didáticos deveriam ser objeto de atenção por parte de um Estado que pretendia uniformizar a educação moral e intelectual dos jovens brasileiros. 
     
    Numa conjuntura internacional de guerra e fortalecimento de regimes totalitários pelo mundo, Getulio Vargas encontrou no contexto interno as condições necessárias para a ação intervencionista do Estado em diferentes setores da vida social. Para controlar a opinião pública e reforçar a propaganda estatal, o regime do Estado Novo (1937-1945) criou o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) e o programa de rádio “A Hora do Brasil”, de execução obrigatória no principal meio de comunicação do período. Ao lado de órgãos repressores e de censura dos meios de comunicação, a ação do Estado incluía o projeto de construção de uma identidade nacional, forjando uma imagem positiva do sentimento de brasilidade junto a uma política de valorização do trabalhador. 
     
    Cultura e educação também eram espaços privilegiados para garantir a legitimação do governo. À frente do Ministério de Educação e Saúde entre 1934 e 1945, Gustavo Capanema cercou-se de uma equipe ampla e diversificada de intelectuais – como Carlos Drummond de Andrade, Candido Portinari e Mario de Andrade – para elaborar e coordenar a centralização das políticas educacionais no Brasil. Em 1938, o ministro expôs ao presidente Vargas suas justificativas para a criação do decreto-lei que fiscalizaria os livros didáticos: “Há medidas e providências, referentes a certos capitais da vida do ensino, as quais devem ser tomadas sem perda de tempo, para que não seja retardada, de futuro, a execução efetiva dessa desejada e sadia política nacional de educação. E entre esses problemas, o dos livros escolares a todos sobreleva”. 
     
    Da publicação do decreto ao início dos trabalhos de julgamento das obras, o ministro demorou cerca de um ano para compor a lista de membros que fariam parte da CNLD. Entre os diversos rascunhos com os nomes de possíveis integrantes, era preciso conciliar interesses e disponibilizar espaço aos diferentes grupos de apoio ao governo. Embora o decreto-lei estipulasse em sete o número de membros da comissão, Gustavo Capanema ampliou o número de integrantes para 16. Na lista havia importantes intelectuais, muitos deles reconhecidos autores de obras educacionais – como Carneiro Leão, Jonathas Serrano e Delgado de Carvalho – representando os católicos e o ensino particular estava o Padre Leonel Franca, e abriu-se espaço para membros do magistério militar, como Waldemar Pereira Cota, professor do Colégio Militar e indicado ao posto pelo ministro da Guerra Eurico Gaspar Dutra. Submetida ao poder e à influência do ministro, a comissão iniciou seus trabalhos entre o final de 1939 e início de 1940, diante de um grande volume de obras já submetidas à avaliação.
     
    Os livros deveriam ser escritos em português, seguir as normas da ortografia estabelecida pela lei e não poderiam conter erros de natureza científica ou técnica. No campo ideológico, seriam impedidos de circular os livros que atentassem contra a política vigente, o regime, o chefe da nação ou as instituições militares. A importância da identidade nacional para aquele governo ficava explícita na homogeneização da cultura com a proibição de apologias às diferenças regionais e à luta de classes. Deveriam ser respeitadas as tradições e os heróis nacionais. As bases de formação do cidadão político seriam o conhecimento do idioma, noções de geografia e história da pátria, arte popular e folclore, formação cívica, moral e consciência do bem coletivo acima dos interesses individuais.
     
    O decreto causou polêmica entre educadores, autores e editores, reação que se intensificou com a demora no processo de avaliação dos livros. Se, por um lado, os livros escolares eram importantes para a veiculação da identidade nacional proposta pelo Estado, por outro, eles eram também produtos rentáveis para o mercado editorial, que se encontrava em franca expansão. A dificuldade de importação de livros durante a Segunda Guerra Mundial resultou em investimentos nas editoras nacionais. Os livros didáticos representavam 60% dos lucros das editoras, lideradas pela Companhia Editora Nacional, no Rio de Janeiro, e a Companhia Melhoramentos, em São Paulo.
     
    Não eram apenas as questões burocráticas que suscitavam polêmicas. A relação entre censores e editoras era permeada por conflitos de interesses. Autores que tiveram suas obras reprovadas protestaram publicamente. Foi o caso de Waldomiro Poch, professor catedrático do Colégio Pedro II, que reagiu ao ter seu livro de zoologia vetado pela comissão. Amplamente utilizada por professores e alunos, a obra teve o parecer de circulação negado com 198 críticas dos relatores, que a consideraram nociva à educação dos jovens brasileiros. Em resposta, Poch publicou, em 1942, o livro Os pareceres da Seção de Ciências Físicas e Naturais da CNLD, no qual critica os responsáveis por esta seção, que teriam condenado 72% das obras submetidas a julgamento e privilegiado livros de sua própria autoria, visando à conquista de todo mercado nacional de obras escolares desta especialidade. “A palavra do relator vale como palavra evangélica, mas o seu propósito é apenas denegrir, desmoralizar a obra e afastar um concorrente do mercado de livros”, escreveu. 
     
    Os trabalhos de julgamento foram paralisados em abril 1942 em virtude da Reforma das Leis Orgânicas de Ensino – também conhecida como Reforma Gustavo Capanema – que regulamentou o ensino técnico e estruturou a educação básica em ciclos, com a educação secundária voltada para formação humanista e transformada em único caminho de acesso à universidade. Até então, a CNLD havia examinado apenas 496 dos 1.818 livros submetidos à avaliação – aprovou 19, desaprovou 248 e não finalizou as outras análises. A redefinição do projeto educacional também refletia a conjuntura internacional de guerra. O rompimento das relações diplomáticas com os países do Eixo, em janeiro de 1942, e a declaração de guerra ao lado dos Aliados, em agosto do mesmo ano, reorientaram as políticas do período e cederam espaço às primeiras manifestações de redemocratização no país.    
     
    Os livros que não passaram pelo processo de julgamento continuaram circulando em caráter provisório, até que os trabalhos da CNLD fossem retomados no final de 1944. Em 28 de agosto de 1945, dois meses antes da queda do regime do Estado Novo, Gustavo Capanema recebeu um relatório com notícias da comissão: até o fim do ano estaria concluído o julgamento dos livros de Ensino Secundário e seria possível fixar para 1º de março de 1946 a publicação da lista oficial – data a partir da qual não seria mais permitida a adoção de livros didáticos no país sem autorização prévia do ministério. 
     
    Iniciativa frustrada, encerrada em definitivo com o fim do Estado Novo, a Comissão Nacional do Livro Didático causou muito mais polêmicas do que resultados efetivos. Sua atuação revela como as políticas educacionais do período envolviam conflitos e interesses que passavam ao largo de uma boa formação para os jovens brasileiros.
     
    Rita de Cássia Cunha Ferreira é autora de A Comissão Nacional do Livro Didático (1938-1945), disponível em: dominiopublico.gov.br.
     
    Saiba mais
     
    ABUD, Kátia M. “Formação da Alma e do Caráter Nacional: Ensino de História na Era Vargas”. Revista Brasileira de História, v. 18, n° 36, 1998.
    BOMENY, H. “A política do livro didático no Estado Novo”. In: OLIVEIRA, J. et al. A política do livro didático. São Paulo: Summus; Campinas: Ed. Unicamp, 1984.
    POCH, Waldomiro. Os pareceres da seção de ciências físicas e naturais da CNLD. Rio de Janeiro: Biblioteca do Livro Didático/ Faculdade de Educação da USP, 1942.
    SCHWARTZMAN, S. et al. Tempos de Capanema. São Paulo: Paz e Terra/ FGV, 2000.