Nas ondas do tráfico

Cândido Domingues

  • Na gravura, o embarque de escravos em um navio negreiro europeu. O papel do capitão era fundamental em quase todas as etapas do tráfico transatlântico de cativos.

    A viagem do capitão José Francisco da Cruz terminou em 17 de setembro de 1757 exatamente onde ele havia passado muitos dos últimos anos de sua vida: no mar. O comandante da embarcaçãoNossa Senhora da Piedade, Santo Antônio e Almas zarpou no início do ano da Cidade da Bahia – como Salvador também era chamada – com destino à Costa da Mina, no continente africano. Para praticar o comércio do outro lado do Atlântico, José Francisco precisaria pagar uma taxa aos holandeses do Castelo da Mina e receber o passaporte que lhe permitia comerciar em algum porto naquela região, onde havia oferta abundante de africanos escravizados. Lá, ele deve ter comandado as negociações e a compra, e, logo depois, dado ordem para retornarem a Salvador. Seis dias após deixarem a costa africana, morreu em alto-mar de causa desconhecida.

    A notícia de sua morte chegou ao porto baiano em 5 de março de 1758, como afirmou Ana Maria do Sacramento, viúva e mãe dos três filhos do capitão. Naquela movimentada freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Praia, local de grande comércio, onde escravos, alforriados e livres ofereciam comidas e serviços, eram organizadas as viagens negreiras. Ali eram compradas as mercadorias nos trapiches e arregimentada a tripulação. Assim que o Nossa Senhora da Piedade arribou no porto, os amigos de José Francisco souberam de sua morte, fazendo a notícia correr as ruas e ladeiras até chegar à Rua da Preguiça, onde residia o capitão.

    A história de José Francisco é apenas uma entre as de centenas de portugueses e brasílicos que desempenharam essa função estratégica e de grande responsabilidade: ser capitão ou mestre das embarcações negreiras na Bahia no século XVIII. Liderar uma expedição desse porte requeria conhecimentos náuticos, da arte dos negócios, da geografia e da política africanas. Esses homens eram peças fundamentais do tráfico transatlântico de escravos, uma vez que participavam ativamente de todas as etapas da viagem.

    Precisavam conhecer os astros e os acidentes geográficos que delimitavam a rota a ser seguida. Muitas vezes atuavam também como pilotos das embarcações, o que exigia conhecimentos sobre os bons ancoradouros, pois nem sempre o mercado de escravos ficava em local onde houvesse cais para atracar o navio. A pilotagem requeria ainda o uso dos instrumentos de navegação – agulha de marear (bússola), astrolábio, quadrante – e de cartas náuticas. Por isso não era raro saberem ler e escrever, ainda que de forma rudimentar. Cabia-lhes também manter a paz e o bom governo dos marinheiros, tarefa nem sempre fácil.

    Em algumas viagens, os armadores – também chamados de senhorios, na maioria das vezes eram donos da maior porcentagem das mercadorias e do navio, a menos que este fosse alugado – enviavam um agente, a quem eram confiadas as transações em terras africanas. Mas era comum que os próprios capitães desempenhassem essa função comercial, cabendo a eles, assim, presentear soberanos e chefes locais, negociar os melhores preços, adquirir mercadorias estrangeiras necessárias às transações. Algumas dessas mercadorias e os presentes podiam ser vinhos e licores da Europa, ferro (em barra ou argolas usadas como adereços corporais), bacias de latão, cobre, armas de fogo, tecidos finos. Era ainda tarefa do capitão contratar pessoas na costa africana para desembarcar o que fora trazido da América e embarcar os africanos recém-comprados.

    Muitas vezes os marinheiros levavam pequenas encomendas, as chamadas carregações. Algumas pessoas entregavam-lhes rolos de tabaco para serem trocados por escravos, cujas especificações de idade, sexo e constituição física eram acertadas entre as partes antes da viagem. Do trabalho dos capitães, portanto, dependiam os lucros dos armadores, assim como o lucro de muitas outras pessoas que lhes faziam as encomendas.

    Esta é uma característica da economia negreira: em geral, uma pessoa ou um grupo de sócios era dono da embarcação, detendo a maioria dos escravos transportados. O porão era completado com as encomendas de terceiros, ou mesmo com escravos adquiridos pelos marinheiros que procuravam aumentar seu ganho. Alguns, como o capitão Manoel da Fonseca, tomavam dinheiro emprestado para a compra de algumas centenas de africanos, tendo expressiva participação na carga do navio. Na Bahia do século XVIII, todos ganhavam com o comércio de africanos da Costa da Mina, como afirmavam os homens de negócio em carta de 7 de janeiro de 1731 para o rei português D. João V.Os grandes traficantes da Bahia eram categóricos ao afirmar que na Costa da Mina “vivem quase todos seus habitadores e empregados na fabris náutica e em outros ministérios. Com ela, e por razão dela, se cultivam os áridos campos da Cachoeira, em que também se empregam os milhares de lavradores”. Esses homens tinham consciência do que diziam; afinal, eram ricos comerciantes – alguns deles também senhores de engenho – que contratavam os capitães ao armarem seus navios negreiros.

     Os capitães eram responsáveis por boa parte do sucesso das grandes fortunas baianas, sem que usufruíssem de sua riqueza e poder. Não enriqueceram, não ascenderam à vida política, não possuíram residências luxuosas nem escravos às dezenas. Era o caso de Luis Pereira Quaresma, que em 1772 morava de aluguel numa casa situada perto da Matriz de Nossa Senhora da Conceição. Muitos dos capitães possuíam poucos bens e sequer tinham imóveis próprios. Como viviam mais no mar que em terra, eles conviviam com poucos objetos: uma imagem do santo de devoção, um baú para levar roupas e objetos, e uns poucos talheres.

    A maioria dos capitães vinha do norte de Portugal e habitava a região portuária de Salvador e seu entorno. Era uma zona de comércio privilegiado e onde se localizava a Igreja de São Pedro Gonçalves, mais conhecida como Corpo Santo, e que ainda hoje pode ser visitada nas proximidades do Elevador Lacerda. Era nessa igreja do santo protetor dos homens do mar que eles faziam suas preces antes da viagem e agradeciam o retorno.

    Ao que parece, muitos capitães negreiros não se casavam pelos ritos oficiais católicos ou não tiveram tempo de oficializar sua união. Foi o caso de José Pereira da Cruz, que havia acertado o casamento com Maria da Conceição, moradora do bairro da Saúde e mãe do seu filho Manoel. José Pereira partiu para a Costa da Mina como capitão da embarcação Nossa Senhora do Rosário e Santo Antônio, deixando Maria com 400$000 (quatrocentos mil réis) e a certeza do casamento, como confirmaram amigas e vizinhas dela. Chegando muito adoentado da Costa da Mina, José não teve tempo de cumprir sua promessa.

    Adoecer não era raro, pois a vida no mar era dura. A pouca disponibilidade de alimentos e água potável, as tempestades e calmarias que podiam alongar a viagem em semanas ou meses, e as diversas enfermidades da costa africana eram alguns dos fatores que aumentavam o risco de adoecer ou morrer no mar. Sarampo, bexiga, diarreia, disenteria e escorbuto eram algumas das doenças que embarcavam nos portos de todas as partes do globo. A tudo isso se somavam as condições de higiene do navio. E os escravos, amontoados, mal alimentados e doentes, contribuíam para esse quadro, mesmo sendo frequentemente lavados com vinagre e água do mar para diminuir a sujeira e odores.

    Apesar de condições tão adversas, os capitães negreiros não fugiam de sua lida. Eles também foram os grandes responsáveis pelo sucesso de milhares de viagens do trato atlântico.

    Sobre o rentável comércio entre a Costa da Mina e a Bahia, os homens de negócios de 1731 diriam ainda mais ao rei. Seus relatos mostram o quanto Salvador enriqueceu com suas viagens promissoras. Afirmavam que com seus lucros “se seguiu a ereção de tantos templos ornados com custosas peças de prata e ouro” e do seu trabalho “tem resultado a nobreza e esplendor dos edifícios públicos e particulares desta cidade”.

    Cândido Dominguesé professor da Universidade Federal da Bahia e autor da dissertação ““Perseguidoresdaespéciehumana”:capitãesnegreirosdaCidadedaBahianaprimeirametadedoséculoXVIII”(UFBA, 2011).

     

    De lá para cá

     

    Durante as Grandes Navegações, entre os séculos XV e XVI, os portugueses conheceram o litoral atlântico africano e as oportunidades de comércio com seus povos. Sua presença se destacou com a construção, em 1482, do Castelo de São Jorge da Mina, cujo nome faz referência às cobiçadas minas de ouro do interior do continente. A construção passou a ser importante base do comércio de ouro e marfim em troca de escravos adquiridos em portos mais ao sul do castelo.

    Apesar de Portugal manter seu domínio no castelo até 1637 – quando ele foi conquistado pelos holandeses –, sua inserção no tráfico de escravos para o Brasil ocorreu no final do século XVII. Angola era o principal fornecedor de escravos até então, mas a epidemia de varíola de 1684 em Luanda, entre outros motivos, levou os traficantes da Bahia a preferirem a Costa da Mina. Lá os traficantes baianos contaram com a boa recepção ao tabaco usado para a compra de escravos.

    O tráfico para a Bahia seria, até o seu fim, marcado pelo comércio com os portos situados nessa região. Para lá confluíram os mais diversos povos escravizados no interior por reinos africanos poderosos: Allada, Daomé e Oyó. Chegando à Bahia, a sociedade escravista passou a classificá-los por denominações genéricas, sendo comum o uso do nome dos portos e regiões onde eles eram embarcados ou dos adjetivos pejorativos usados na própria África e, em alguns casos, de nomes étnicos do continente africano. Foi nesse período que os termos “arda”, “costa da mina”, “jejes” e “nagôs” se popularizaram na Bahia.

     

    Saiba Mais - Bibliografia

    Florentino, Manolo. Em Costas Negras: uma história do tráfico entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

    KLEIN, Herbert S. O Tráfico de Escravos no Atlântico. Ribeirão Preto: Funpec, 2004.

    Rodrigues,Jaime.De Costa a Costa: escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de Janeiro (1780-1860). São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

    Verger,Pierre.Fluxo e Refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo de Benin e a Bahia de Todos os Santos do século XVII ao XIX. Salvador: Corrupio, 2002.

     

    Saiba Mais - Internet

    Voyage – The Trans-Atlantic Slave Trade Database

    www.slavevoyages.org