Por mais de meio século Leonel de Moura Brizola (1922-2004) teve atuação marcante na vida política nacional. Mas ele costuma ser mais lembrado por seu papel a partir dos anos 1980, quando fundou o Partido Democrático Trabalhista (PDT), governou o Rio de Janeiro por duas vezes (1983-1987 e 1991-1994) e concorreu em três eleições à Presidência (1989, 1994 e 1998, a última como vice de Lula). Pouco se fala de sua atuação nos anos que antecederam o golpe de 1964. E ela foi decisiva.
Nasceu em Carazinho, no Rio Grande do Sul. Seu pai, o tropeiro José Oliveira Brizola, morreu na Revolução Federalista de 1923. A mãe, Onívia de Moura, não pôde criá-lo e um amigo de José, dizendo cumprir seu último desejo, levou o menino com ele. Sem poder estudar, Brizola lavou pratos, engraxou sapatos, vendeu jornais e carregou malas na estação ferroviária em troca de comida. Por sorte, um pastor protestante e sua mulher o criaram. O menino não perdeu a oportunidade: no exame de admissão ao ginásio, ficou em primeiro lugar. Em Porto Alegre prestou concurso para o ingresso em uma escola técnica e novamente obteve o primeiro lugar, formando-se em técnico agrícola. Depois, trabalhou como operário numa refinaria e jardineiro da Prefeitura. Após cursar o ginásio e o colegial à noite, com grande esforço, foi aprovado no vestibular no curso de Engenharia Civil.
Em 1945, Brizola e João Goulart (conhecido como Jango) entraram para o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Dois anos depois foram eleitos deputados estaduais e em 1950 tornaram-se cunhados, quando Brizola se casou com Neusa Goulart, irmã de João. Naquele ano Brizola foi reeleito deputado estadual, chegou a deputado federal em 1954 e a prefeito de Porto Alegre em 1955. Sua gestão foi muito positiva nos bairros populares: investiu em saneamento básico, na melhoria dos transportes e na construção de dezenas de escolas. A popularidade conquistada garantiu sua eleição ao governo do estado, em 1958.
Como governador, privilegiou o desenvolvimento econômico. Recorrendo à tradição nacional-estatista inaugurada por Vargas, fundou a Caixa Econômica Estadual, o Banco Regional de Desenvolvimento Econômico e empresas estatais em atividades estratégicas, como a Aços Finos Piratini e a Companhia Rio-Grandense de Telecomunicações. Construiu estradas, articulando as regiões produtivas com os portos, e manteve a prioridade de investir em educação: criou 5.902 escolas primárias, 278 escolas técnicas e 131 ginásios e escolas normais. Foram abertas 688.209 matrículas e contratados 42.153 professores.
Brizola também apoiou movimentos camponeses, como o Movimento dos Agricultores Sem Terra (MASTER). Mas a atitude de maior impacto de seu governo foi a nacionalização de duas empresas norte-americanas – de energia elétrica e de telefonia – que se recusavam a investir na infra-estrutura e a ampliar os serviços. Brizola as encampou como patrimônio estatal, pagando indenizações simbólicas, de 1 cruzeiro.
Em agosto de 1961, ele se tornaria conhecido nacionalmente. Diante da renúncia do presidente Jânio Quadros, os três ministros militares vetaram a posse do vice, João Goulart. Brizola deu então início ao movimento conhecido como Campanha da Legalidade. Para mobilizar o país pela posse de Jango, instituiu a Cadeia Radiofônica da Legalidade, que alcançou 150 rádios no Brasil e no exterior em transmissões feitas do próprio Palácio Piratini, sede do governo gaúcho.
Cerca de 45 mil voluntários se apresentaram para lutar. Brizola os armou com fuzis, metralhadoras e munições da Brigada Militar, além de mil revólveres requisitados no comércio. Um confronto parecia iminente. Na manhã de 28 de agosto, o governo gaúcho interceptou ordens do ministro da Guerra, general Odílio Denys (1892-1985), para que o comandante do III Exército, general Machado Lopes (1900-1990), bombardeasse o Palácio Piratini. Brizola discursou na Rede da Legalidade: “Se ocorrer a eventualidade do ultimato, ocorrerão, também, conseqüências muito sérias. Porque nós não nos submeteremos a nenhum golpe. A nenhuma resolução arbitrária. Não pretendemos nos submeter. Que nos esmaguem! Que nos destruam! Que nos chacinem, neste Palácio! Chacinado estará o Brasil com a imposição de uma ditadura contra a vontade de seu povo. Esta rádio (...) não será silenciada sem balas”.
Àquela altura a campanha conquistara boa parte da sociedade brasileira. Organizações de trabalhadores, estudantes, empresários, advogados, jornalistas, a Igreja Católica e partidos políticos exigiam o cumprimento da Constituição. Quando o comandante do III Exército também apoiou a posse de Goulart, os ministros militares cederam, não sem antes negociar uma “saída honrosa”: a implantação do parlamentarismo – na prática, Jango tomaria posse, mas não governaria.
João Goulart aceitou a condição. Seu plano era pacificar o país e lutar pelo retorno do presidencialismo. Brizola discordava. Para ele, o Congresso perdera a legitimidade ao instituir o parlamentarismo durante a madrugada. Defendia uma atitude extrema: Jango deveria marchar até Brasília com as tropas do III Exército, assumir a Presidência, dissolver o Congresso por violar a Constituição e convocar uma Assembléia Nacional Constituinte.
O protagonismo no auge da crise fez de Brizola uma liderança no campo popular, nacionalista e de esquerda. Em 1962, candidato a deputado federal pelo estado da Guanabara, recebeu 269 mil votos, a maior votação da história até então. Dentro do PTB, representava os militantes mais esquerdistas – os “nacional-revolucionários”. No início de 1963, lançou a Frente de Mobilização Popular (FMP), reunindo organizações que lutavam pelas chamadas reformas de base – agrária, urbana, tributária, administrativa, bancária e educacional. Participavam da FMP a União Nacional dos Estudantes (UNE), o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), facções das Ligas Camponesas, grupos revolucionários como a Ação Popular (AP) e o Partido Operário Revolucionário-Trotskista (POR-T), segmentos de extrema-esquerda do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e a Frente Parlamentar Nacionalista (FPN). O governador de Pernambuco, Miguel Arraes (1916-2005), integrantes do Partido Socialista Brasileiro (PSB) e organizações de sargentos, marinheiros e fuzileiros navais também aderiram ao movimento.Por sua vez, o presidente João Goulart contrariava as esquerdas com a tentativa de compor uma aliança entre o PTB e o Partido Social Democrático (PSD), para obter maioria no Congresso Nacional. Para Brizola, isso era “política de conciliação”. Sua estratégia era a do confronto: greves, passeatas e manifestações públicas para conquistar as reformas – “na lei ou na marra”.
Inconformado com a postura do presidente, Brizola tornou-se seu mais contundente crítico. Com o crescimento dos apoios cada vez mais à esquerda, tinha planos de formar um partido revolucionário. Em fins de 1963, liderou a criação de “grupos de onze companheiros”, para lutar pelas reformas de base, libertar o Brasil da espoliação estrangeira e “instaurar uma democracia autêntica e nacionalista”. Milhares de grupos se formaram em todo o país.
Enquanto as esquerdas atacavam o governo de João Goulart, a direita conspirava para derrubá-lo. Nesse clima de radicalização, o presidente optou pela política ofensiva das esquerdas no famoso comício da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, em 13 de março de 1964. No palanque, Brizola fez um contundente discurso contra o Congresso Nacional e defendeu a realização de um plebiscito para a convocação de uma Constituinte: “A única saída pacífica é fazer com que a decisão volte ao povo através de uma Constituinte, com a eleição de um Congresso popular, de que participem os trabalhadores, os camponeses, os sargentos e os oficiais nacionalistas, homens públicos autênticos, e do qual sejam eliminadas as velhas raposas da política tradicional. Dirão que isto é ilegal. (...) Por que, então, não resolvem a dúvida através de um plebiscito? Verão que o povo votará pela derrogação do atual Congresso”.
Dezoito dias depois do comício, começava o golpe civil-militar. João Goulart logo se convenceu de que resistir seria inútil. Brizola ainda planejava mobilizar o Brasil contra o golpe na clandestinidade, mas, perseguido pelos militares, foi obrigado a fugir: vestindo uma farda da Brigada Militar, viajou de automóvel com um casal por cerca de 100 km, entre Porto Alegre e a praia de Cidreira, onde o piloto de Jango o resgatou em um pequeno avião no dia 4 de maio. Dali partiu para Montevidéu.
Assim que chegou à capital uruguaia, foi ao encontro de outros exilados brasileiros, reunidos em um cinema. Um deles, o jornalista Mauro Santayana, lembra das palavras que Brizola lhes dirigiu, ainda vestindo a jaqueta da Brigada Militar. Para ele, não existiam mais chefes nem subordinados – o exílio igualava todos. A única alternativa era a união, acima das diferenças ideológicas: “Quando nenhum de nós tiver mais de uma camisa, se chegarmos a essa situação, devemos rasgar a única camisa ao meio, e dar a metade para o companheiro que estiver de peito nu”, discursou. E, ali mesmo, foram distribuídas as primeiras tarefas com o objetivo de derrubar a ditadura militar no Brasil.
Outro momento se iniciava na vida de Leonel Brizola. Mas as lutas continuariam.
Jorge Ferreira é professor de História da UFF (Universidade Federal Fluminense) e autor, com Daniel Aarão Reis, de As Esquerdas no Brasil ( Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007)
Saiba Mais - Bibliografia:
AXT, Gunter (org.). As guerras dos gaúchos. História dos conflitos do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Nova Prova, 2008.
LEITE FILHO, F. C. El caudilho. Leonel Brizola. Um perfil biográfico. São Paulo, Editora Aquariana, 2008.
MARKUN, Paulo e HAMILTON, Duda. 1961. Quer as armas não falem. São Paulo, Editora Senac, 2001.
Saiba Mais - Sites:
Discursos de Brizola na Rede da Legalidade podem ser ouvidos no projeto Vozes do Rádio, da PUC-RS: http://www.pucrs.br/famecos/vozesrad/vozes.html
Nasce um líder das esquerdas
Jorge Ferreira