Navegar é preciso; orar, também

Lia Jordão

  • Foi por meio da conquista marítima que um pequeno país da Península Ibérica tornou-se um grande império. A expansão de Portugal marcou tanto sua história que está presente até em textos religiosos. É o caso do pequenino livro de orações Viagem devota, e feliz, em que os Navegantes exercendo algumas devoções e discorrendo em coisas espirituais, que abonarão com vários exemplos, distribuirão o tempo, o que tudo se manifesta em diálogos. A segunda edição do livro, de 1746, está guardada na Divisão de Obras Raras da Biblioteca Nacional.

    Frei Apolinário da Conceição, autor da obra, compara a experiência da navegação transoceânica com a passagem para a vida eterna, já que ambas são plenas de perigos e exigem coragem, disciplina e muita fé. Também trata do cotidiano da viagem entre Lisboa e o Brasil, dirigindo-se explicitamente aos homens do mar. A escolha do autor pela viagem rumo à América não é à toa. Ele conhecia bem a trajetória que já havia percorrido. Além disso, a vinda para o Novo Mundo representava a expansão da cristandade.
    Nascido em 1692 na cidade de Lisboa, frei Apolinário ingressou na Ordem Primeira de São Francisco no ano de 1711, em São Paulo, na província da Imaculada Conceição, que reunia os conventos franciscanos da região meridional da América portuguesa. Escritor incansável e de notável erudição, deixou alguns dos mais importantes registros da atuação franciscana na Colônia, como o famoso Primazia seráfica na região da América (1733).

    Sua reputação não impediu que a obra passasse pelo crivo de várias autoridades antes de ser impressa, o que era praxe na época. Religiosos franciscanos e qualificadores do Tribunal do Santo Ofício emitiram nada menos do que seis pareceres para que o livro pudesse ser publicado. Todos os documentos atestam “não ter sido encontrada cousa contrária à nossa Santa Fé e bons costumes”. Um dos censores do Santo Ofício faz, inclusive, elogios à forma como o autor se comunica com seus leitores: “no seu título mostra o livro a sua utilidade, pois para fazer, nas sempre inquietas e perigosas ondas do mar, em que se experimentam tantos naufrágios, prósperas e felizes as viagens, são o leme mais seguro as devoções. Em bem fundada analogia, os navios muita semelhança têm com os conventos, porque como o discreto autor pondera, neles também há prelado, a quem se obedece sem repugnância, e clausura, que sem violação se guarda”.

    Frei Apolinário divide a obra em sete Diálogos conduzidos pelo capelão. Ele ensina, por meio do recurso didático do relato exemplar, orações dedicadas a Deus, a Jesus Cristo, à Virgem Maria e aos santos católicos, especialmente São Francisco de Assis, “patrocinador dos navegantes”. Dessas conversas participam ativamente os “personagens” da nau: capitão, piloto, contramestre, calafate e cirurgião, entre outros. Também são apresentadas várias adaptações dos exercícios espirituais à rotina da embarcação. É o caso das rezas do Ofício Divino (Liturgia das Horas), no qual as horas canônicas são adaptadas aos quartos de serviço de vigília, que, regulados pelos “relógios de areia”, eram bem conhecidos pelos navegantes.

    Exemplo curioso é o Diálogo I, em que o capelão propõe que os presentes se reúnam para rezar. Doze dias após a partida de Lisboa, já teria passado tempo necessário para que os navegantes estivessem “descansados do penoso trabalho que causa a saída das barras” e “livres do terrível enjôo”, afirma ele.  A ideia do capelão é fazer com que todos orem em grupo para que “alcancem de Deus próspera viagem”. Ele aconselha os navegantes a empregar o “muito tempo que em semelhantes viagens sobra” nas devoções e sugere que, ao romper do dia, antes do início dos trabalhos na embarcação, todos dediquem algum momento às orações matinais.
    O piloto comenta com o capelão que, nas circunstâncias impostas pela viagem, estas orações nem sempre são cumpridas. O problema, segundo ele, é que os marinheiros responsáveis pela vigília “até o quarto d’alva”, ou seja, entre quatro e oito horas da manhã, não conseguem dormir com o som dos cânticos, ou então “mais dormem do que rezam, e se o fazem é mais pelo temor do castigo, e não por devoção”.

    Após longo debate entre o piloto e o capitão, conclui-se que, “para descansar, que seja em outra parte, e para louvar ao Senhor, há de ser com muita reverência e devoção”. Por isso, é preciso alterar a rotina das orações, deixando dormir os que vigiaram à noite, e os que se levantam comecem a louvar individualmente, para depois fazer-se uma sequência curta de orações coletivas. Como as orações ensinadas são novas para muitos navegantes, o contramestre lembra a necessidade “de que alguém as diga, porque (...) há pouca luz para a leitura”. O capelão então se oferece para dizer as orações nos primeiros dias, até que todos as conheçam de cor.

    Ao longo da exposição das recomendações religiosas, o texto acaba por descrever episódios importantes da viagem, como no último Diálogo, que marca os 35 dias no mar e gera a expectativa de se avistar terra. O capitão avalia que a viagem está correndo excepcionalmente bem: “ventos favoráveis, serenidade do tempo, boa expedição da nau”, fato atribuído à profunda devoção dos navegantes. Enquanto o capelão e o capitão conversam sobre a gravidade dos pecados – afirmando que os mortais e os veniais devem ser igualmente combatidos – e o primeiro ensina os “remédios” para evitá-los – o principal deles, a oração –, chega a boa notícia. Muito contente, o caseiro anuncia “temos terra à vista e tão clara que aquele é o Cabo de Santo Agostinho”. Em pouco tempo os passageiros estariam no Convento de Santo Antônio de Igarassu, em Pernambuco, destino final dos navegantes. Os perigos do mar haviam sido vencidos. Restava o desafio de continuar expandindo a Santa Fé em terras coloniais.