Qual o preço que os homens de armas estão dispostos a pagar para ganhar uma batalha? A resposta para esta pergunta pode abranger desde decisões que levem à morte centenas de inocentes até a adoção de táticas de guerra inusitadas. O documento Capitulação proposta pelo M. Victor Hughes..., de 1809, guardado na Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional, fornece indícios de uma inesperada estratégia por parte dos militares luso-brasileiros em guerra contra os franceses da Guiana. O procedimento singular consistia na libertação imediata de todos os escravos franco-guianenses que mudassem de lado e lutassem contra seus antigos donos.
Quando o documento foi lavrado, a família real portuguesa estava residindo no Brasil havia quase um ano, na tentativa de se proteger da invasão francesa de Portugal, que se aliara à Inglaterra, principal inimiga da França e de Napoleão. O conflito continental motivou a retaliação ao torrão francês da Guiana, levando luso-brasileiros e franceses a uma breve e pouco lembrada batalha. Embora de curta duração, a vitória portuguesa foi simbolicamente importante para a combalida nação – festejos e missas se seguiram às notícias do êxito. Além disso, a posse da colônia francesa tinha valor estratégico, já que havia indefinição das fronteiras que separavam os dois territórios, uma disputa intermitente que durava mais de um século.
A derrota iminente das tropas francesas na Guiana nos primeiros dias de 1809 levou o governador da colônia sul-americana de Napoleão, Victor Hughes (1762-1826), a redigir sua capitulação. Lembrado como um político astuto, Hughes havia conseguido se manter nos quadros da política francesa mesmo diante das diversas reconfigurações de poder da Revolução Francesa. No episódio em questão, ele confirma sua “astúcia” elaborando uma narrativa que o exime de qualquer culpa pela derrota. A capitulação é um documento que estabelece as condições para que o exército em vias de ser derrotado se renda, evitando mais derramamento de sangue e garantindo uma retirada “honrosa” – com armas e bandeiras – dos perdedores. O “comissário” de Napoleão na colônia se vale da libertação dos escravos para justificar sua rendição.
No documento, redigido em francês, lê-se: “Ainda que os Postos avançados tenham sido tomados à força (...), deve-se declarar (...) que a rendição ocorre menos pela força do que pelo sistema destrutivo de libertar todos os escravos que fossem para o lado inimigo”. Dias antes da sua rendição, Victor Hughes pede por escrito aos oficiais portugueses e ingleses a confirmação de que eles “agiam em virtude das ordens de Sua Alteza Real o Príncipe Regente”. De posse da confirmação da ordem de libertar os escravos que trocassem de lado e com as tropas luso-brasileiras em seu encalço, Victor Hughes redige sua capitulação. Nela, afirma que a decisão de se render foi motivada pela necessidade de proteger os colonos contra os escravos rebelados e poupar as grandes fazendas – as habitations – dos incêndios ateados a várias delas. Ele percebe que os incêndios não eram fatos fortuitos de guerra, mas acontecimentos premeditados que poderiam levar ao aniquilamento da colônia: “Querendo então salvar a Colônia de uma destruição total e conservar os Súditos de seu Augusto Mestre que lhe deram tantas provas de apego e fidelidade, o Comissário de Sua Majestade Imperial e Real, Napoleão, entrega a Colônia às forças de Sua Alteza Real o Príncipe Regente D. João”.
A iniciativa de usar escravos como inimigos internos numa guerra foi, no mínimo, curiosa. Esse fato acabou manchando as celebrações pela conquista da Guiana Francesa junto à Corte portuguesa no Rio de Janeiro. Algumas pessoas próximas do príncipe regente D. João chegaram a externar seu descontentamento. Alegavam que tais ordens nunca teriam sido dadas. Tinham medo de que essa atitude abrisse um novo precedente e que a experiência de São Domingos – já então rebatizado de Haiti –, onde uma revolta de escravos pôs abaixo o domínio francês entre 1791 e 1804, se espalhasse pelos domínios americanos, atingindo a nova residência da monarquia e da nobreza de Portugal.
Negra arma branca
Iuri A. Lapa e Silva