Nem tão eróticas

Marina Soares

  • Um lugar especial dentro do palácio do sultão, cheio de lindas mulheres nuas. É assim que o harém aparece no imaginário ocidental. E foi essa ideia que se tornou sonho, desejo, devaneio e matéria para todo tipo de construção artística, de literatura e de discurso dos europeus que visitaram o Império Turco-Otomano ao longo do século XVII. Nessa vertente, pouco se fala sobre as mulheres que viviam no local.

    Preenchido por mulheres de variadas religiões, culturas e lugares, o harém será constante nas mentes ocidentais. Obras de pintores como Delacroix (1798-1863) e Ingrès (1780-1867), além de escritores como Montesquieu (1689-1755), nas Cartas Persas, e Diderot (1713-1784), em Joias Indiscretas, são exemplos de como o exotismo passou a ser relacionado ao Oriente, e ao gineceu. Nas Cartas Persas, por exemplo, é possível ler que “no serralho tão numeroso em que vivi, impedi que o amor aflorasse”. Essa possibilidade de prazer inesgotável, em referência ao Oriente, será bastante comum, sobretudo no século XIX. Mas essa imagem pouco falava sobre as mulheres. Seu significado remetia mais a um lugar de fantasias.

    É certo que houve sultões que mantinham um vasto número de mulheres à sua disposição. Mas muitas dessas mulheres não mostravam satisfação nem obediência ao seu senhor, tampouco permaneciam nuas e desejosas de sexo à sua espera. Michel Baudier, que no século XVII escreveu várias obras sobre o Império Turco, nota que as mulheres do harém mantinham relações com estrangeiros, numa espécie de vingança pelas traições que elas recebiam. Desse modo, a imagem do homem, hierarquicamente superior, que domina moças ingênuas pode ser interessante como enredo de textos ficcionais ou de filmes. Mas ela não consegue explicar a complexidade dessas relações.

    Um rápido olhar sobre a constituição desse espaço mostra como o Ocidente foi recortando e montando uma imagem singular sobre o harém. Alguns momentos da história das mulheres muçulmanas foram privilegiados, como aquele que vislumbra odaliscas no palácio do sultão turco; outros foram suprimidos, como o pálido destaque dado à participação política das mulheres do mensageiro do Islã, Maomé (c.570-632 d.C.), à época da constituição da religião islâmica. Muitos elementos também foram ajustados de acordo com as necessidades ou os interesses político-sociais da época. O resultado foi a crença de que o espaço do harém era povoado por mulheres nuas, ou seminuas, desejosas da presença de seu senhor.

    No entanto, não é esse o cenário que existia entre os árabes no momento da consolidação da religião islâmica, no século VII d.C. Um dos primeiros assuntos explorados pela narrativa cristã foi a vida de Maomé, tema de uma série de biografias na Idade Média. Entre as inúmeras abordagens possíveis está a sua invejável potência sexual. Isso, certamente, estava respaldado pelos seus vários casamentos e pelas declarações do próprio Maomé, que salientava a importância da sexualidade na vida do muçulmano.

    As “mulheres do profeta” apareciam nessa literatura normalmente como personagens secundárias. Afinal, os autores não estavam interessados em ressaltar a participação política delas ou sua atuação combativa frente aos problemas cotidianos do grupo. O papel que muitas assumiam, inclusive como conselheiras e interlocutoras, não é destacado. Optou-se por privilegiar o tratamento da figura do profeta, enquanto as mulheres orbitavam à sua volta.

    O cenário do harém, ao longo dos séculos XVII e XVIII, pode ser apreendido a partir de vários textos de viajantes que rumaram para o Oriente. Além de Baudier, há inúmeros viajantes franceses e representantes ingleses, como o advogado inglês Henry Blount ou o clérigo protestante William Biddulph. As narrativas resultantes dessas viagens descrevem regiões do Império Turco, Persa, e o norte da África. Os objetivos dessas viagens iam do comércio às aventuras pessoais. E o resultado é uma extensa produção textual, com registros sobre a política, a economia, os costumes, e também sobre o funcionamento do harém imperial.

    Não é possível afirmar que todos os viajantes estivessem interessados em conhecer o espaço do harém. Alguns autores sequer falavam sobre ele, como Blount. Mas há os que dedicam um capítulo inteiro ao tema ou mencionam algumas de suas características ao longo das narrativas. Entre eles pode-se destacar o francês Jean Chardin (1643-1713). Ele viajou duas vezes ao Império Persa, em 1666 e novamente em 1671. Na sua longa obra, dividida em dez volumes, é possível encontrar numerosas observações sobre o harém.

    Ele escreveu sobre esse espaço a partir de informações que provinham de um eunuco – indivíduos castrados que tinham funções específicas dentro do palácio, como guardar os quartos femininos–que havia servido no serralho da tia do rei persa. No texto, o autor chama a atenção para a beleza das mulheres, mas também classifica o lugar como “uma prisão perpétua, da qual se sai somente por um golpe do acaso”. Chardin mostra um cenário de tensão, intrigas, medo e até desespero. As mulheres que compunham o harém eram cativas de guerra ou, muitas vezes, vendidas por suas próprias famílias em troca de uma pensão. Poucas poderiam ascender ao posto de “favorita” do soberano. Isso ocorreria, por exemplo, com a moça que desse o primeiro filho ao rei. Mas a imensa maioria dessas mulheres não tinha tal sorte e permanecia reclusa nesse espaço. Em geral, tornava-se favorita a mulher que desse o primeiro filho varão ao soberano ou que fosse escolhida diretamente por ele. Ela gozava de uma posição destacada frente às outras, podendo tomar decisões referentes à organização do harém, além de se tornar, mais tarde, a rainha do palácio.

    Um dos elementos importantes dessas narrativas é a alusão ao lugar social do harém. Os serralhos eram espaços disponíveis para uns poucos abastados. Não sem razão, foi sobre os “haréns reais” que os europeus se debruçaram quando inventaram o seu próprio harém entre os séculos XVIII e XIX. A grande massa da população muçulmana não conseguiria criar e manter um gineceu dispendioso.

    Fora dos palácios imperiais, o harém das casas comuns é simplesmente um espaço de convívio feminino. Era formado por filhas, mães, tias, avós, e alimentado, muitas vezes, pelo desejo de ultrapassar fronteiras e alcançar as ruas, locais aos quais elas não tinham acesso.

    O harém, presente no califado muçulmano, não era o mesmo que existia no império turco. Este, por sua vez, guarda inúmeras diferenças em relação ao gineceu das casas muçulmanas comuns, centrado na separação física entre homens e mulheres, e sem qualquer conotação sexual. Desconsiderar esses elementos é insistir numa visão deturpada sobre a vida das mulheres que ali viviam. A presença delas não se restringia ao espaço do harém, e não apenas no Império Turco, mas em qualquer outra região muçulmana. Ela se projeta para outros âmbitos da sociedade muçulmana, atuando na religião, na cultura e na política ao longo da história dessa sociedade.

               

    Marina Soares é autora da dissertação “Erótica sem véu. O corpóreo-sexual na sociedade árabe-islâmica clássica (séculos XII-XIII)” (USP, 2009) e de Erótica sem véu (Multifoco, 2011).

     

    Saiba Mais - Bibliografia

     

    MERNISSI, Fatima. Sonhos de transgressão. Minha vida de menina num harém. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

    MERNISSI, Fatima. O harém e o Ocidente. Lisboa: Edições Asa, 2001.

    SHOHAT, Ella e STAM, Robert. “O imaginário do harém” In Crítica da imagem eurocêntrica. São Paulo: Editora Cosac Naify, 2006.