No cravo e na ferradura

Andréa Lisly Gonçalves

  • A defesa da monarquia com tendências absolutistas apoiada por ex-escravos, mestiços e cativos. Estranho? Essa união pode parecer inconciliável, mas a estratégia foi utilizada por grupos restauradores nas revoltas do Período Regencial – que vai da abdicação de D. Pedro I, em 7 de abril de 1831, até a maioridade de seu filho D. Pedro II, em 23 de julho de 1840. Foram vários os governos e várias as revoltas nesse hiato. Entre as correntes que disputavam o poder, os restauradores (ou caramurus) formavam o grupo que almejava o regresso do Primeiro Imperador. Sua ação se estendeu por todo o Brasil, em rebeliões diversas.

    Uma delas aconteceu no pequeno Arraial de Santa Rita do Turvo, pertencente ao Termo de Mariana, em Minas Gerais. Em 18 de dezembro de 1831, em meio a vivas a D. Pedro I, os sediciosos asseguravam que a volta do Primeiro Imperador era certa. Cerca de 50 pessoas permaneceram reunidas das 10 da manhã às 2 da tarde, portando espingardas, espadas e facas. Garantiam que, se fossem requisitadas forças policiais para dispersá-las, bastaria “um só grito” para que se juntassem a elas mais de 400 pessoas.

    Postados nas duas principais estradas do povoado ou reunidos na praça da matriz, os amotinados não se limitavam a proferir palavras de ordem pela restauração do Primeiro Imperador ao trono do Brasil. Pelas ruas, em correrias, davam salvas de tiros e se dirigiam diretamente aos escravos, conclamando-os a empunhar armas. Prometiam a liberdade aos cativos em troca de sua adesão à insurreição e diziam que assassinariam os brancos que não participassem do movimento, tomando-lhes as mulheres, propriedades e bens. Ameaçavam mobilizar também os índios, devido à proximidade com o Presídio de São João Batista, na Zona da Mata mineira, onde viviam aldeados cerca de 500 indígenas.

    Encabeçando o movimento sedicioso estava o português Manoel José Esteves Lima, capitão-mor de milícia e proprietário de um grande engenho. Sua posição como integrante da “boa sociedade” da região se consolidou em várias eleições como vereador da Câmara de Mariana. Outro líder era o coronel João Luciano de Souza Guerra, também dono de engenho e de fazendas de gado. Aos 62 anos, o coronel mantinha um intenso comércio com a Corte do Rio de Janeiro e possuía nada menos que 98 escravos – número alto mesmo para os parâmetros de Minas Gerais, a maior província escravista do Brasil Imperial, onde predominavam pequenas posses, de um a três escravos.

    Que os dois militares fossem partidários da restauração e defendessem a volta de D. Pedro I ao trono do Brasil, é fácil de entender. Afinal, eram homens de ascendência portuguesa, adeptos do imperador, e que, diferentemente dos liberais, não demonstravam tanto apreço por uma monarquia constitucional. Mas o que teria levado forros, mestiços e escravos a se alinharem aos caramurus?

    Na região de Minas, a capitania do ouro, persistia em parte da população um sentimento de lealdade ao imperador. Ele era fruto de uma tradição de motins que vinha desde o século XVIII, sempre no intuito de afastar os “maus governantes” locais, preservando a figura do rei. Desta vez, o mau governo era representado pelos liberais que assumiram a Regência.

    Os novos donos do poder eram vistos como uma ameaça. Houve aumento da cobrança de tributos, o que gerou ainda mais insatisfação devido à rigorosa seca que atingiu a região naquele ano. A criação da Guarda Nacional, também em 1831, pelo então ministro Diogo Antônio Feijó (1784-1843), atiçou a desconfiança dos sediciosos em relação às autoridades constituídas. Difundia-se a ideia de que o verdadeiro objetivo do recrutamento era a escravização dos mestiços.

    Por isso, a aliança popular em torno dos caramurus adquiriu um claro conteúdo étnico. Mestiços e negros libertos aderiam ao movimento pelo medo de serem reescravizados. Um ex-escravo afirmou que resolveu participar da revolta para impedir os homens brancos de “vesti-los de ceroulas de algodão”, uma referência ao traje sumário dos cativos. Várias testemunhas contaram que um dos revoltosos apontara uma arma para o peito de um morador chamado Manoel Rodrigues Branco, roceiro de 22 anos. O agressor perguntou-lhe, então, se era “branco ou pardo”. Como Manoel Rodrigues respondeu que era mulato, foi liberado imediatamente. Não há como saber se a vítima foi escolhida devido à sua qualidade (homem branco) ou ao seu sobrenome (Branco). O fato é que na qualidade “pardo” residia um importante elemento de identidade que estimulou a ação de muitos rebelados.

    Alguns anunciavam que a rebelião propriamente dita estava marcada para o dia de Natal, quando se encontrariam em número ainda maior e marchariam para Mariana, primeira cidade de Minas Gerais, sede do primeiro bispado da capitania, “onde se acharão mel mais grosso pois aí haviam mulheres abelhas”, como se lê nos processos-crime instaurados para apurar os acontecimentos. O tema dos “meles produzidos por mulheres abelhas” é recorrente no candombe, festa negra com batuque e dança. Nesses folguedos, a cabacinha com cachaça, quando passa de mão em mão para o consumo coletivo, se faz acompanhar, com algumas variações, dos seguintes versos cantados: “Que abelha tão brava/ que mel tão doce”. 

    Os planos de marchar sobre Mariana eram movidos pelo conhecimento que os rebeldes tinham de que os levantes não se restringiam àqueles distritos – aconteciam ao mesmo tempo em muitos pontos do Império brasileiro.

    O movimento do Arraial de Santa Rita foi totalmente reprimido pelo governo liberal. Mas a prisão de vários revoltosos e a abertura de processos-crime contra eles não foram suficientes para refrear o ânimo das lideranças conservadoras. Prova disso é que, menos de um ano e meio depois, o grupo participou ativamente da Revolta do Ano da Fumaça. A sedição de nome curioso – que se deve à espessa neblina que tomou conta da região por causa do frio intenso – começou em 22 de março de 1833. Nesse dia, os restauradores, aproveitando-se da ausência do presidente da província, Mello e Sousa, partidário do governo regencial, marcharam sobre Ouro Preto e assumiram o poder na então capital mineira.

    Depois de aclamarem Manoel Soares do Couto presidente da província, os rebeldes tomaram uma série de medidas: libertaram militares presos sob a acusação de defenderem a restauração, diminuíram os impostos sobre a aguardente, cunharam moedas e suspenderam a proibição de enterros dentro das igrejas. De Mariana, o “governo intruso” (como era chamado pelos liberais) não podia deixar de contar com os antigos líderes de Santa Rita, Manoel José Esteves Lima e João Luciano de Souza Guerra (agora vereador). O apoio vinha também de outras regiões, como a comarca de Sabará, onde o principal líder era o coronel do Exército José de Sá Bittencourt, outro militar abastado, dono de 111 escravos.

    Apesar da clara continuidade dos movimentos ocorridos em 1831, houve uma mudança fundamental na Revolta do Ano da Fumaça: desta vez, os mestiços, escravos e forros foram mantidos afastados.

    A estratégia de alijar as “classes ínfimas” do apoio às suas bandeiras acabou se voltando contra os próprios restauradores, e não apenas contra eles. Em 13 de maio, tinha início na Freguesia de Carrancas, próxima a São João Del Rei, uma das maiores revoltas de escravos de todo o período imperial. Liderados pelo escravo tropeiro Ventura Mina, os revoltosos aproveitaram a ausência da Guarda Nacional – destacada para reprimir o governo rebelde de Ouro Preto – e invadiram várias fazendas. Queriam “vencer os brancos e tornarem-se senhores de terrenos e riquezas”.

    Mesmo com a adesão de dezenas de escravos, o movimento não teve êxito. A repressão aos sediciosos foi drástica: em 1835, 17 foram condenados à pena de morte por enforcamento e outros quatro à de açoites e ferros.

    Pouco mais de duas semanas depois que a rebelião de Carrancas foi debelada, os caramurus foram destituídos do poder em Ouro Preto por tropas regenciais. Era o fim da Revolta do Ano da Fumaça. Mas seus líderes tiveram melhor sorte que os cativos insurgentes: foram todos anistiados. Continuaram, como antes, proprietários de escravos e terras.

    Andréa Lisly Gonçalves é professora da Universidade Federal de Ouro Preto e autora de Estratificação social e mobilizações políticas no processo de formação do Estado Nacional Brasileiro: Minas Gerais, 1831-1835 (São Paulo: Hucitec, 2008).

    Saiba Mais - Bibliografia:

    ANDRADE, Francisco Eduardo. “Poder local e herança colonial em Mariana: faces da Revolta do ‘Ano da Fumaça’ (1833)”. In: Termo de Mariana: História e documentação. Mariana: UFOP, 1998. p. 127-135.

    MATTOS, Ilmar Rohloff e GONÇALVES, Márcia de Almeida. O Império da boa sociedade: a consolidação do Estado imperial brasileiro. São Paulo: Atual, 1991.

    MOREL, Marco. O período das Regências (1831-1840). Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

    PRADO Jr., Caio. Evolução política do Brasil: Colônia e Império. São Paulo: Brasiliense, 1985.

    Saiba Mais - Filmes:

    “A Última Ceia”, de Tomás Gutiérrez Alea. Cuba, 1976.

    “Queimada!”, de Gillo Pontecorvo. Itália, 1969.