No Delírio da Febre

Liane Maria Bertucci

  • Sem tratamento específico, presente em todo o planeta: esta é a gripe, uma doença que existe de forma bastante semelhante em homens e animais. Um pouco de febre, espirros, dores no corpo, às vezes tosse, são os principais sintomas da moléstia também chamada influenza, que, felizmente, é considerada benigna, isto é, não oferece risco para a vida do paciente nem deixa seqüelas graves. Mas nem sempre a influenza foi considerada tão inofensiva – muito pelo contrário.

    Desde 1918, algo atormenta médicos, cientistas e autoridades sanitárias do mundo inteiro. Alguma coisa diferente aconteceu com a gripe “de todos os anos”: a doença prostrou e matou como nenhuma outra havia feito. Até o início do século XXI, considerando a relação tempo/número de vítimas fatais, nenhum outro acontecimento (epidêmico ou não) provocara tantas mortes. A gripe de 1918 teria surgido em campos de treinamento militar nos Estados Unidos e se espalhado em conseqüência do movimento de tropas. Com exceção de ilhas da Oceania, totalmente isoladas, a doença varreu o mundo de forma avassaladora entre agosto de 1918 e janeiro de 1919, atingindo duramente o Brasil.


     As notícias sobre a Primeira Guerra Mundial ocupavam as páginas dos jornais brasileiros em meados de 1918. Provavelmente, poucas pessoas deram importância às pequenas notas que informavam sobre uma forte gripe que se alastrava pela Espanha, pois outro acontecimento era considerado mais próximo e significativo: a Missão Médica Brasileira partia para auxiliar no socorro às vítimas da guerra. Os médicos embarcaram no fim de agosto, e o mar revolto fez da travessia uma viagem difícil – triste presságio.


     Depois de algumas semanas, casos de influenza espanhola começaram a aparecer em outros países europeus, e logo a doença seria detectada também em outros continentes. Dacar (no Senegal) e Freetown (em Serra Leoa), locais de passagem de muitos soldados, estavam entre as primeiras localidades da África a registrar casos da enfermidade. Navios com soldados e médicos do Brasil haviam ancorado nesses lugares, e começaram a chegar notícias sobre brasileiros doentes. Mais de 50 teriam morrido, entre eles, três integrantes da Missão Médica. Os leitores mais atentos começaram a se preocupar.


  •  Entre incertezas e informações desencontradas, no dia 14 de setembro o navio Demerara, vindo de Lisboa, aportava no Rio depois de ancorar em Recife e Salvador. Algumas pessoas estavam doentes desde a travessia do Atlântico. Metade dos passageiros ficaria na cidade. Durante a viagem tinham ocorrido cinco óbitos, um deles por gripe, possivelmente “espanhola”. Devidamente desinfetado pelas autoridades sanitárias, o navio foi autorizado a desembarcar homens e carga. Dois enfermos foram para o Hospital de Isolamento, e uma mulher que havia chegado no Demerara adoeceu e foi internada no Hospital da Gamboa, onde morreu poucos dias depois. O hospital e o prédio onde ela havia se hospedado foram desinfetados e, segundo as autoridades médico-sanitárias, nenhum outro caso teria surgido entre os passageiros do navio. Porém, alguns discordavam dessa informação.

     Pouco a pouco, a doença foi atingindo cada vez mais pessoas. O diretor geral da Saúde Pública, doutor Carlos Seidl, mesmo afirmando que a gripe que vitimava os moradores da cidade era diferente da que matava na África e na Europa, resolveu tomar medidas preventivas nos portos, ordenando a desinfecção e a quarentena de navios. A doença era a mesma, e as medidas adotadas foram inúteis. O número de enfermos e mortos cresceu vertiginosamente em várias cidades. Em algumas semanas, o país inteiro estava gripado, e Seidl perdeu seu emprego.

     Em São Paulo, o primeiro caso oficial de gripe espanhola deu entrada no Hospital de Isolamento no dia 13 de outubro. A equipe do Serviço Sanitário do Estado de São Paulo redigiu um comunicado à população com considerações, já muito repetidas, sobre casos de gripe.Este dizia que não existia meio profilático eficaz para deter qualquer gripe, exceto um inviável isolamento absoluto por longo tempo. Toda a profilaxia teria que ser individual: as pessoas deveriam fugir de qualquer aglomeração, principalmente à noite, evitar fadiga, não fazer visitas e adotar cuidados higiênicos, sobretudo com o nariz e a garganta, possivelmente as portas de entrada do micróbio da doença.

    Como no Rio, postos de socorro foram organizados para tratar os enfermos e auxiliar famílias desamparadas. Hospitais foram preparados, farmácias foram autorizadas a distribuir remédios por conta do Serviço Sanitário. Médicos, estudantes de medicina, enfermeiros, farmacêuticos, todos se mobilizaram. A colaboração da população foi intensa, ajudando no socorro, distribuindo medicamentos e comida. Entretanto, além do crescimento do número de enfermos, em poucos dias a quantidade de mortes aumentou assustadoramente. Cada vez mais desesperados, os paulistanos acompanhavam o fechamento de escolas, parques e clubes. Bondes vazios, ruas desertas: a cidade praticamente parou. 

  •  Entre outubro e novembro, as informações estampadas nos jornais de todo o país eram tenebrosas: o Rio parecia um imenso hospital, médicos ficavam enfermos, faltava comida, mortos permaneciam dias insepultos por falta de covas e de quem as abrisse, farmácias fechavam por não haver quem manipulasse remédios. Em Curitiba, periódicos reproduziam os “Conselhos ao Povo” em meio a informações desencontradas sobre a moléstia, enquanto médicos atônitos tentavam socorrer uma população apavorada. A situação se repetia em Belo Horizonte, Porto Alegre e várias outras cidades brasileiras. O que fazer?
     

    Para muitos, a solução era rezar: nas missas e ladainhas das igrejas católicas ou nos cultos e correntes de orações protestantes, as súplicas se multiplicaram. Apesar da recomendação de que fossem evitadas as aglomerações, alguns templos permaneceram abertos. Em São Paulo, a capelinha do Bom Jesus do Monte, no Carandiru, abriu as portas para que pessoas fizessem suas preces ao glorioso São Sebastião, o protetor contra as pestes. Em Salvador, fiéis desesperados conseguiram que os padres descessem a imagem do Senhor do Bonfim do altar da Catedral e a instalassem na nave central da igreja, para que todos pudessem rezar a seus pés pelo fim da epidemia. No Recife, todas as noites orações eram oferecidas a São Sebastião na Igreja de Nossa Senhora do Terço, com pedidos pelo fim da “terrível moléstia”. No Rio, as orações ao padroeiro foram redobradas, e quando o número de enfermos começou a diminuir, devotos agradecidos percorreram a cidade em procissão.

     Desde as primeiras discussões sobre a epidemia, cuja origem foi atribuída por alguns a uma desconhecida arma bacteriológica alemã, a maioria dos médicos brasileiros e estrangeiros definiu a doença como gripe – enfermidade sem tratamento específico, com um ciclo individual de quatro a seis dias e um ciclo epidêmico de aproximadamente seis semanas. Para os “espanholados”, recomendava-se ingestão de quinino, inalações de vaselina mentolada, cânfora, gargarejos com água e sal e outros tratamentos, além de muito repouso.
     

    O que mais poderia ser feito? Para os médicos, muito pouco. Entretanto, no rastro de declarações vagas sobre a doença, multiplicaram-se os anúncios de produtos supostamente capazes de evitar ou curar a gripe espanhola. Os medicamentos compostos de quinino, ou que se valiam do nome da substância para ganhar a preferência popular, estiveram entre os primeiros a serem apresentados como a grande panacéia contra a epidemia. O Quinado Constantino, o Elixir de Quina e o Quinino Ballor, preparado com limão, eram anunciados entre xaropes e comprimidos, a exemplo dos que, com o sugestivo nome de Dakar, eram oferecidos aos porto-alegrenses para “o combate aos micróbios da espanhola”. Nos anúncios dos jornais paulistanos, as “soberanas” Cápsulas de Vita eram apresentadas como um produto “específico para a influenza espanhola”. Aos paulistanos também eram oferecidas as Pílulas Sudoríficas de Luiz Carlos, que preveniriam e curariam a influenza, e o fortificante Vanadiol, “o mais enérgico tônico reconstituinte”: diante do aspecto frágil e esquálido dos enfermos, a aparência saudável e a beleza eram associadas à gordura.

  •  Não foram somente os laboratórios que abusaram da propaganda. Explorando o medo generalizado de contrair a doença e a alegria dos que tinham se curado, anunciantes de produtos e serviços manipulavam a desgraça representada pela gripe espanhola para tentar ganhar dinheiro. Cigarros Sudan, Água Tônica de Quinino Antarctica, Vinho do Porto e até as redes da Fábrica Iracema, de Fortaleza, ligaram seus nomes à influenza espanhola para atrair a atenção e a preferência popular. O importante era vender. “Nada de pânico: fumem Sudan!”

     Havia também os que prometiam a cura imediata da doença, como Madame Virgínia e seu Farador, que realizava uma não explicada “oxigenação do sangue”, ou Moura Lacerda, que assim se dirigia aos aflitos: “Gripe pneumônica reinante – espanhola: todos saram”. Bastaria que seguissem as recomendações, muito bem remuneradas, de sua “autocura física”, que incluía reeducação alimentar, uso de plantas, tratamento com banhos e luz solar. Gratuitas, ao alcance de todos, as indicações caseiras tomaram conta do país. Cebola, alho (inclusive em patuás, para “espantar” a doença), balas de canela, chás de eucalipto, de carqueja com sal (receita mineira) ou de cipó mil-homens (indicação vinda de Porto Alegre) foram alguns dos produtos indicados.

    Vários desses produtos faziam parte da terapêutica médica havia anos, inclusive aquele que mereceu a preferência nacional: o limão. A pequena fruta cítrica motivou comentários até mesmo do presidente da República: a escassez do limão estaria tumultuando ainda mais o Rio de Janeiro, problema que ameaçava reproduzir-se em outras cidades, onde o preço da fruta disparou, azedando ainda mais a vida de doentes e sãos. Doce foi outro “remédio”, a brasileiríssima cachaça. Para alegria dos produtores, vendedores e apreciadores, e desespero dos médicos, muitos apostavam na pinga contra a moléstia.
    Vários também foram os que procuraram o auxílio da homeopatia contra o mal. O Serviço de Profilaxia Rural do Paraná, em panfleto distribuído à população, era taxativo: a homeopatia não cura a gripe epidêmica e nenhuma outra enfermidade. A reação foi imediata: com o título “A homeopatia também cura”, várias pessoas se manifestaram na imprensa curitibana para defender publicamente a prática.
     

    Mas as semanas passavam e o número de doentes e mortos se multiplicava. Em São Paulo, em 4 de novembro, a cidade de 528.295 habitantes contabilizou 7.786 novos enfermos e 172 mortos pela gripe espanhola em um só dia. Muitos se desesperaram. A tentativa de suicídio de um operário, que acreditou estar com influenza espanhola porque tinha dor de cabeça, dá a dimensão de como era assustadora a simples idéia de estar com a doença.


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    As tragédias que aconteciam “no delírio da febre” se repetiam com uma freqüência alarmante: tiros, facadas, pauladas, afogamentos, saltos para a morte. Pessoas gripadas tentavam o suicídio ou matavam quem estava mais próximo. Terrível foi o caso da família Schonhardt, de São Paulo, no qual o fanatismo religioso teve papel fundamental: mãe e filho mataram o pai, asfixiado com uma pedra de amolar, e deceparam sua cabeça. Acreditavam que o pai, que ardia em febre devido à gripe espanhola e havia trocado o protestantismo pelo catolicismo era, na verdade, a encarnação do demônio.
     

    Piores ainda, até hoje misteriosas, foram as histórias dos que teriam sido mortos com o “chá da meia-noite”, supostamente servido por médicos e enfermeiros a doentes terminais, pois assim liberariam leitos para os que tivessem chance de cura. Os casos dos (quase) “enterrados vivos” também incendiaram a imaginação dos brasileiros. Em São Paulo, foram dois os episódios mais comentados. João Turco e Eugenio Benzana teriam escapado por um triz de irem parar numa cova. Benzana, bêbado e epilético, foi encontrado, sem sentidos e gelado no centro da cidade. Já estava dentro do caixão quando acordou e saiu aos pulos pelo cemitério. João Turco, gripado em estado terminal, despertou depois de um período desacordado e percebeu que estava dentro de uma capela, prestes a seguir para a “última morada”. Médicos e autoridades deram explicações e desmentidos, mas todos se perguntavam: quantos não foram realmente enterrados vivos?
     

    Pergunta sem resposta, como tantas outras relacionadas à epidemia. Nem mesmo se sabia o motivo da diminuição da intensidade da doença em quase todo o Brasil a partir da segunda quinzena de novembro. Poucos arriscariam alguma conclusão, além do assinalado ciclo epidêmico de todas as gripes: as seis semanas chegavam ao fim.
     

    A partir do final de novembro, as cidades começaram a retomar sua vida normal. Elegantes senhoras e sóbrios cavalheiros caminhavam por calçadas antes desertas; moleques e meninas brincavam novamente nas praças. Da mesma maneira meteórica e enigmática como começou, a gripe espanhola acabou. Somente nas duas maiores cidades do país a doença matou 18.161 pessoas: 12.830 no Rio e 5.331 em São Paulo. Na então capital da República, com 886.453 habitantes, foram pelo menos 620.517 os enfermos; em São Paulo, os doentes somaram, no mínimo, 116.777. É impossível calcular quantos foram os gripados e mortos no país, pois muitos lugares não fizeram registros.


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    Para as pessoas que haviam vivenciado o período da doença, mesmo felizes com o fim da epidemia, a influenza espanhola continuava uma grande incógnita. Afinal, como uma gripe podia matar de forma tão descomunal? Poderia ocorrer outra epidemia de gripe espanhola?

    O enigma sobre a causa da virulência da doença tem motivado estudos variados. Desde 1933, com a identificação de um vírus mutante, o Myxovirus Influenzae, como o causador da gripe, os estudos sobre a “espanhola” ganharam novos rumos. Corpos congelados no Ártico foram desenterrados; amostras preservadas de tecido pulmonar de soldados mortos de gripe em 1918 foram estudadas várias vezes. Em 2001, cientistas australianos apresentaram uma nova hipótese sobre a influenza espanhola: em 1918 teria ocorrido uma combinação total entre o vírus da gripe humana e o da gripe animal (porcina). A resistência dos humanos a esse “novo” vírus seria, em tese, nula. Em meados de 2006 surgiram novas informações. Pesquisadores americanos anunciaram que tinham recriado o vírus da influenza de 1918 em laboratório, a partir de fragmentos do vírus congelado encontrados em um cadáver exumado no Alasca. Nas pesquisas com cobaias, realizadas em laboratório de segurança máxima, constataram a letalidade desproporcional da “espanhola”, pois a resposta imunológica provocada pelo vírus foi tão intensa que os organismos infectados acabaram por atacar e destruir suas próprias células. As cobaias morreram em apenas seis dias.
     

    Se uma parte do mistério parece cada vez mais desvendada, a resposta para a segunda questão continua desafiando a ciência médica. Uma epidemia como a de 1918 poderá se repetir? Em 1918, foram mais de 20 milhões de mortos e 600 milhões de enfermos em todo o mundo. Praticamente metade da população do planeta ficou gripada. O que aconteceria hoje, com nossos ágeis meios de transporte? Cientistas em diferentes áreas do globo monitoram constantemente sinais do perigo, pesquisam remédios e vacinas que um dia possam efetivamente curar gripados ou imunizar contra a influenza. Até lá, frangos, patos, porcos e outros bichos serão exterminados em massa quando houver a suspeita de que possam infectar diretamente as pessoas ou combinar, de forma explosiva, a sua gripe com a de seres humanos. O que nos resta? Confiar nas ações de monitoramento, torcer para encontrarem a cura e, para os que crêem, rezar; aliás, como o homem faz há milênios, quando se vê diante de um mal desconhecido.

    Liane Maria Bertucci é historiadora, professora do Departamento de Teoria e Fundamentos da Educação da Universidade Federal do Paraná (UFPR). É autora do livro Influenza, a medicina enferma. Campinas: Editora Unicamp, 2004.