Meu caro ministro e amigo,
Às 5 horas da tarde, subindo no elevador do ministério, e cruzando com os colegas do gabinete que desciam para assistir à conferência do Alceu, fiz um rápido exame de consciência e verifiquei que eu não podia fazer o mesmo, ou antes, que eu não devia fazer o mesmo. Uma outra conclusão, logo, se impôs: não podendo participar de um ato público, promovido pela autoridade a que sirvo, e que visava afirmar, mais do que uma orientação doutrinária, um programa de ação do governo, eu não só deixava de servir a essa autoridade como lhe criava mesmo uma situação desagradável. [De Carlos Drummond de Andrade a Capanema em 25 de março de 1936]
O trecho destacado acima é de uma carta escrita por Carlos Drummond de Andrade ao ministro Gustavo Capanema em 25 de março de 1936. O poeta mineiro foi um fiel e constante chefe-de-gabinete desde a nomeação de Capanema para o Ministério da Educação e Saúde Pública (MES), em 1934. O texto traz duas indicações que permitem capturar o clima do período. A primeira delas é o profundo envolvimento de Drummond com a política federal. Isto nos permite dizer que o Ministério da Educação e Saúde ficou famoso não tanto pela Educação, e menos ainda pela Saúde, mas pelo que não estava em sua sigla: a cultura. A segunda indicação que a carta do poeta nos traz refere-se à polêmica que marcou a gestão de Capanema: a disputa entre liberais e conservadores dentro do ministério. A disputa de idéias e projetos teve como protagonistas, desde o início, os intelectuais educadores do Movimento da Escola Nova – liberais reformadores –, dos quais o mais conhecido era o baiano Anísio Teixeira. E pelo lado conservador, a liderança da Igreja Católica, associada a Alceu Amoroso Lima.
A criação do Ministério da Educação e Saúde Pública, em 14 de novembro de 1930, foi um dos primeiros atos do governo provisório de Getulio Vargas. A nova pasta deveria cuidar de todos os assuntos relativos a ensino, saúde pública e assistência hospitalar. A montagem do ministério e as reformas educacionais do período traziam sempre a justificativa de incluir o Brasil na paisagem do mundo moderno. Os intelectuais tiveram um papel ativo nessa empreitada. Não que tivessem esperado a formalização de um ministério para pensar sobre o Brasil ou para incluir a educação nos diagnósticos de modernização do país. Mas a iniciativa federal imprimiu um outro vigor ao trabalho.O primeiro a assumir o Ministério da Educação e Saúde Pública foi o político mineiro Francisco Campos, que ocupou o cargo até 1932, sendo sucedido por outro mineiro, Washington Pires. Gustavo Capanema, também de Minas, assumiu o ministério em 1934 e se manteve à frente dele por onze anos, até 1945. O Ministério da Saúde só veio a ser instituído no dia 25 de julho de 1953, com a Lei nº 1.920, que desdobrou o Ministério da Educação e Saúde em duas pastas distintas: Saúde e Educação e Cultura. Somente em 1985 se criaria no Brasil o Ministério da Cultura.
A jovem cidade de Belo Horizonte (inaugurada em 1897), ainda nos seus vinte e poucos anos, foi, durante a década de 1920, o cenário do encontro de um grupo que acabou formando a constelação Capanema.Circulavam por ali Abgar Renault, Alberto Campos, Carlos Drummond de Andrade, Emílio Moura, Francisco Martins de Almeida, Gabriel de Rezende Passos, Gustavo Capanema Filho, Hamilton de Paula, Heitor Augusto de Souza, João Alphonsus de Guimarães, João Guimarães Alves, João Pinheiro Filho, Mário Álvares da Silva Campos, Mario Casassanta, Milton Campos e Pedro Nava. O “Grupo do Estrela” – nome do café onde se reuniam – criou o hábito da conversa nos bares, nas livrarias e nas confeitarias que atravessaria décadas e se enraizaria como ritual e cultivo da atividade dos intelectuais mineiros da cidade dos modernistas da década de 1920.
Durante a gestão de Capanema no MES, uma verdadeira constelação de notáveis ali se formou e se manteve como referência na memória intelectual brasileira. Além dos nomes já citados, movimentavam-se ao redor de Capanema personagens como Heitor Villa-Lobos, Rodrigo Melo Franco, Mário de Andrade, Lourenço Filho, Fernando de Azevedo, além de poetas, escritores, músicos, teatrólogos e jornalistas que aceitaram integrar comissões de concursos, reformas de ensino de música e desempenhar outras funções em parceria com o MES.
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Dos colaboradores de Capanema, Carlos Drummond foi um dos que ficaram expostos ao constrangimento de ter que justificar sua permanência e sua fidelidade ao ministério durante o Estado Novo (1937-1945). O período autoritário deixou marcas na história do Brasil, combinando a modernização educacional e cultural com uma política de Estado repressora. Paralelamente ao fechamento político, à repressão aos liberais, à prisão e à tortura, o governo promovia a cultura com iniciativas de incentivo à literatura e às artes, de organização e de execução de atividades em diversos institutos desenvolvidos para tal fim. Data do mesmo período a criação de órgãos voltados para a cultura, como o Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Instituto Nacional do Teatro e o Instituto Nacional do Livro, e para a repressão, como o Departamento de Imprensa e Propaganda – DIP –, que controlava e censurava o que não estivesse de acordo com o regime. É compreensível que, diante de tais contradições, o poeta Drummond fosse chamado a explicar sua permanência no governo ao longo de todo o período.
A dimensão da política cultural pode ser medida por algumas referências. Durante o Estado Novo foram criadas instituições e entidades culturais, entre elas, o Serviço de Radiodifusão Educativa, destinado a orientar e promover a utilização do rádio nas escolas, e o Serviço Nacional do Teatro. Do lado da educação, mais especificamente, foi criado o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep), em 1938, órgão destinado ao estudo e à orientação dos poderes públicos sobre os problemas nacionais do ensino. O Inep funciona ainda hoje como órgão federal de avaliação técnica de políticas para a educação. Além disso, foi criada a Comissão Nacional do Livro Didático, constituída como um sistema de vigilância do livro didático com o objetivo de zelar pela qualidade e vedar a utilização de materiais “perniciosos”. Veio também dali o Instituto Nacional do Cinema Educativo, destinado à produção de filmes para o ensino de todos os graus e ramos.
O ensino superior e o secundário passaram por reformas básicas. A Lei Orgânica do Ensino Secundário, de 1942, ficou conhecida como Reforma Capanema e permaneceu em vigor até surgir a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em 1961. O grande projeto da Reforma Universitária teve como carro-chefe a criação da Universidade do Brasil, em 1937. O projeto consistiu na ampliação da Universidade do Rio de Janeiro, primeira universidade do Brasil, criada em 1920. As grandes reformas do ministério Capanema também deram impulso aos sistemas de ensino industrial, técnico e comercial, configurados na criação do Sistema S (Senai, Sesc, Sesi, Senac etc). Montado nos anos 1940, o Sistema S ganhou fama internacional e é, ainda hoje, referência em toda a América Latina.
O censor ideológico do Estado Novo atuava implacavelmente sobre cada um desses organismos. Vozes dissonantes e orientações plurais não caberiam em um projeto tão uníssono. “A Voz do Brasil” – “a Voz do Governo” – é uma herança daquele período. Um programa de rádio concebido no contexto da política autoritária de Vargas (1939) que passou incólume pela ditadura do pós-1964 e se mantém hoje, em pleno curso da democracia no país. Criar um homem novo para um Estado Novo passou a ser a bandeira do projeto de construção do Estado Nacional no Brasil do pós-trinta. Estabelecia-se assim o vínculo entre sucesso no empreendimento político-ideológico do Estado e o aprimoramento das técnicas de educação como instrumentos de mudança de mentalidade, formação das almas, com valores transmitidos não só pelo sistema educacional formal, mas também nos programas e propagandas produzidos pelo Estado. Educação e cultura se transformaram nas pontas de sustentação do regime.
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O ministério de Capanema acabou abrigando iniciativas mais ousadas. Em 1938, o então ministro da Justiça, Francisco Campos, formulou um projeto que visava mobilizar a juventude para a formação de milícias civis de hierarquia rígida sob o comando de um chefe. A Organização Nacional da Juventude, como foi chamada originalmente, era uma iniciativa de cunho fascista que determinava que todas as instituições de educação cívica, moral e física existentes no país deveriam se subordinar a ela. Embora não tenha saído do papel, o projeto ilustra o tipo de discussão que o governo central acolhia. O veto ao projeto veio das Forças Armadas, que se sentiram atingidas por uma intervenção civil. No momento de endurecimento do Estado Novo, o regime autoritário já se definia pela desmobilização, distanciando-se do fascismo e do nazismo, que, ao contrário, se caracterizaram pela intensa mobilização de massas. Perdendo o sentido original de mobilização, o movimento acabou se caracterizando pela feição cívica, não militarizada, um ícone dos tempos de Capanema – o Movimento da Juventude Brasileira. A apresentação pública dos jovens uniformizados, as paradas cívicas nas datas de celebração nacional e a presença nas festividades às quais comparecia o presidente Vargas resumem, no fim, o que foi a atuação da Juventude Brasileira no Estado Novo. Um movimento de caráter cívico voltado para o culto dos símbolos nacionais, bastante distinto da organização de milícias desenhada originalmente pelo ministro Campos.
A formação das mentalidades era um dos grandes objetivos do Estado Novo. Um dos exemplos claros da extensão desse projeto foi a reforma do ensino primário, que consistiu na ampliação do número de escolas e dos recursos destinados à educação e, sobretudo, na nacionalização do ensino. A preocupação se materializou com o fechamento dos milhares de estabelecimentos escolares organizados pelos colonos estrangeiros, e em pleno curso nas regiões de imigração, particularmente no Sul do país – Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo. O ano de 1938 acabou se tornando um símbolo da intolerância política, com projetos que não se moldavam segundo o figurino oficial do regime. A violência com que se praticou a nacionalização do ensino e os efeitos desagregadores que atingiram as comunidades com a desarticulação de todo um sistema educativo estão registrados em documentos do período.
Desde a década de 1920, crescia no Brasil, sob a bandeira da Escola Nova, a experiência de reformas educativas nos estados de Minas, São Paulo e Rio de Janeiro, entre outros. Os liberais da educação, como ficaram conhecidos, defendiam a universalização do ensino em um país com quase 80% da população analfabeta. A bandeira de uma educação pública, gratuita e laica se espalhava como ideal dos chamados Pioneiros da Educação Nova. O confronto com a ala conservadora, liderada pela Igreja Católica, se deu principalmente pela defesa liberal de uma educação não-confessional e pública. A Igreja não só defendia o ensino religioso como ela própria era proprietária de uma rede de escolas no país.
Um dos exemplos dramáticos das restrições políticas ao pluralismo foi a experiência, nascida e abortada, da Universidade do Distrito Federal (UDF) – 1935/1939. Identificada com Anísio Teixeira, a instituição foi fechada pela ditadura sob a acusação de cultivar a ideologia e o programa comunistas. Para fazer a intervenção, o governo contou com a atuação dos setores mais conservadores da Igreja Católica, que nunca absorveu com tranqüilidade a campanha nacional promovida pelos pioneiros, sob a liderança de Anísio Teixeira.
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Anísio veio da Bahia para o Rio de Janeiro em 1931 e integrou a comissão do Ministério da Educação encarregada de estudar a reorganização do ensino secundário no país, e, mais tarde, foi nomeado superintendente do Serviço de Inspeção dos Institutos de Ensino Secundário do MEC. Ao longo do Estado Novo, o educador baiano sofreu suas maiores derrotas. De todas elas, talvez a mais marcante tenha sido a perda do cargo de direção na Universidade do Distrito Federal em 1935, quando foi substituído por Francisco Campos, defensor de idéias contrárias às suas no terreno da pedagogia e da política. Era um prenúncio do fechamento da Universidade pelo governo logo depois, em 1939.
Um dos mais notáveis assinantes do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nacional (1932), Anísio defendeu ao longo de toda a sua vida a adoção de um sistema escolar público, gratuito, obrigatório e leigo. A eliminação da obrigatoriedade do ensino religioso das escolas fazia parte desse programa de reforma educacional. Naturalmente que esta não era uma bandeira que a Igreja quisesse empunhar. O episódio do fechamento da UDF foi daqueles que confirmaram o incômodo com que os setores conservadores consideravam o avanço dos ideais comunistas no Brasil.
Helena Bomeny é professora titular de Sociologia da Universidade de Estado do Rio de Janeiro (Uerj), pesquisadora do CPDOC/FGV e organizadora do livro Constelação Capanema: intelectuais e políticas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001.
No fio da navalha
Helena Bomeny