No império das aparências

Fabiana Sena

  • Considera-se hoje como “civilizada” uma pessoa que sabe a maneira “adequada” de comer, andar, falar, se vestir e se comportar em espaços públicos e privados, entre outros atributos necessários para a vida em sociedade. Esta série de padrões de conduta é hoje aprendida e compartilhada desde a infância, dentro de cada casa, transmitida oralmente e por diversos meios de comunicação. Em sua origem, no entanto, a civilidade foi disseminada principalmente pelos livros.

    Civilidade foi um verdadeiro gênero literário no Brasil Império. Ao longo do século XIX, foram publicadas dezenas de obras com esse perfil, logo incorporadas ao currículo das escolas de Primeiras Letras. Eram tratados de cortesia, manuais de savoir-vivre (saber viver), regras de etiqueta e de conduta, elementos de moral, guias do bom-tom e de boas maneiras. Seu propósito era modificar o comportamento das pessoas, regulamentando em detalhes as atitudes sociáveis e inserindo os indivíduos numa vigilância e controle das suas próprias ações.

    A importância dos livros de civilidade fez-se sentir a partir da chegada da Família Real portuguesa no Brasil, em 1808, fugida das tropas de Napoleão Bonaparte, que estava para dominar o território ibérico. Este episódio sinalizava novos tempos para a colônia: a presença da Corte modificaria significativamente o cenário cultural e educacional brasileiro. O príncipe regente português, futuro D. João VI, transferiu para o Rio de Janeiro toda a burocracia do governo, incluindo os arquivos, a Biblioteca Real, o Tesouro público e, segundo alguns historiadores, 15 mil pessoas, entre membros da Corte, funcionários do governo e seus familiares.

    A mudança provocou transtornos para os moradores, subitamente às voltas com a escassez de habitações, esgotamento sanitário, iluminação, alimentação, vestuário e, também, de educação. Era necessário não apenas estruturar o espaço urbano, de modo a deixar para trás o estatuto de vila e assumir o de cidade, mas modificar o comportamento humano. Faltavam escolas e livros que orientassem os moradores a saber como conviver com a nova situação: agora eles estavam na sede de uma monarquia europeia – e a partir de 1815, na capital de um Império ultramarino.

    Os livros vinham de Portugal, muitos deles traduções de obras francesas, como  O amigo da juventude, Tesouro da paciência, O amigo das mulheres, Avisos de uma mãe a seu filho, Lições de um pai a sua filha, Instrução da mocidade, Livro dos meninos, Recreação de um homem sensível, Tesouro de adultas, Tesouro de adultos, História de Simão de Nantua. Traduzidas do espanhol, chegaram, por exemplo, as Lições de boa moral de virtude e de urbanidade. E também os portugueses produziam seus guias para moldar bons cidadãos, com as intenções muitas vezes explícitas no título, como o Novo manual do bom tom, contendo moderníssimos preceitos de civilidade, política, conduta, e maneiras em todas as circunstâncias da vida, indispensáveis à mocidade e aos adultos para serem benquistos e caminharem sem tropeço pela carreira do mundo.

    Embora ampliados à nova situação brasileira, os livros com conteúdo de civilidade eram herdeiros de uma tradição vinda de publicações renascentistas de grande circulação na Europa, comoO cortesão (1528), de Baldassare Castiglione, A civilidade pueril (1530), de Erasmo de Roterdam, e O galateo (1558), de Giovanni Della Casa. Essas obras instituíram um novo modo de viver no mundo. Até então, tudo era compartilhado e todos viviam em um mesmo espaço. Combinados ao crescimento das cidades, os valores do Renascimento apontavam para maior atenção à individualidade e à privacidade. Surge a divisão da casa, separando o ambiente íntimo (quarto) do social (sala), passa-se a comer com seus próprios talheres e copos, sem falar nos guardanapos. Os europeus aprendem os benefícios sociais de falar em tom moderado e com gestos contidos, escolher as temáticas de conversação dependendo do ambiente em que estão e das pessoas à sua volta, vestir roupas apropriadas para determinados tipos de eventos. São regras como estas que chegam ao Brasil do início do século XIX, traduzidas em livros de leitura e aos poucos reformuladas de acordo com as questões sociais da época.

    Em Tesouro de meninas, publicado originalmente em 1757 pela francesa madame Leprince de Beaumont, os personagens são a aia Bonna e as suas discípulas – sete meninas de nomes Sensata, Babiola, Espirituosa, Molly, Mary, Carlota e Altiva – na faixa etária dos 5 aos 13 anos. Já em Tesouro de meninos (s/d), do francês Pierre Blanchard, os personagens se apresentam como o “Pai de Família” e seus dois filhos – Paulino, 12 anos, e Felícia, 11. Nestas duas obras a forma da narrativa se apresenta por meio do diálogo. Diferente é o Código do bom-tom ou regras da civilidade e de bem viver no século XIX (1845), do português de José Inácio Roquette, onde as regras de conduta são expostas por meio de trocas de cartas (gênero epistolar). Os personagens são o Pai, também sem nome, e as crianças Teófilo (8 anos) e Eugênia (6 anos).

    Em comum, as três obras utilizam personagens adultos (o pai e a aia) na função de mestres, colocando as crianças na condição de aprendizes. As lições são parecidas: orientações práticas de boas maneiras e bons comportamentos: “Levai à sociedade um ar doce, cortês, até mesmo alegre. Se tendes experimentado algum desgosto, esquecei-vos dele na entrada da porta. É grande despropósito ir buscar companhia para lhe mostrar mau humor e enfastiá-la. Se vos é impossível oferecer um semblante afável, ficai em casa, que é o melhor que podeis fazer”, recomenda o Pai no livro de Blanchard.

    “Já te disse, meu filho, quão respeitoso devias ser para com os velhos e eclesiásticos; agora acrescento que o mesmo deves fazer para com as senhoras; é do teu dever ceder-lhes o melhor lugar, nunca passar por diante delas, ouvir com atenção o que te dizem, e ver se precisam dalguma coisa para lha ofereceres”, escreve em carta o Pai criado por José Inácio Roquette. “Eu vos prometo que se o fizerdes, seja infalível a emenda, e que vos fareis tão amável quanto a vossa irmã mais velha, e tão ditosa como ela, por estar certa que não viveis a vosso gosto por serdes má”, adverte a aia Bonna, do livro de Madame Beaumont.

    Estas breves prescrições revelam as máscaras que a criança deveria usar para bem agir na sociedade. Era necessário dissimular e encobrir os verdadeiros sentimentos, de modo a estabelecer laços sociais com outras pessoas. Leitores em potencial dos livros sobre civilidade, crianças, jovens e mesmo adultos tinham ali uma orientação para controlar suas emoções e evitar “maus comportamentos”. Divulgando modos de viver que eram novidade para a maioria, essas obras ajudavam a estabelecer uma espécie de contrato social entre os leitores. No caso do público infantil, este deveria ser regulado, moldado, polido para o convívio social, afastando-se dos vícios e praticando as virtudes valorizadas pela sociedade civilizada – leia-se: a cultura europeia. Esse processo de controle, transformação e modelagem de comportamentos é claramente demonstrado pelo discurso dos personagens adultos. Eles se valem não apenas de conselhos e ensinamentos, mas também de ameaças e referências de medo e de culpa.

    A civilidade era a chave para a fabricação de indivíduos socialmente aceitos. Por isso a missão civilizatória daqueles livros foi imprescindível à constituição e fortalecimento do Estado Nacional no Brasil Império. Pouco acessíveis às classes populares devido à grande quantidade de analfabetos e de pessoas fora da escola, as nobres publicações de moralidade e etiqueta tiveram ainda o efeito de acentuar a desigualdade social no país: de um lado os que sabiam ler, e portanto se comportar de acordo com os modos e costumes importados da Europa; do outro, os excluídos das letras, e portanto dos códigos da “boa sociedade”.

     

    Fabiana Sena é professora da Universidade Federalda Paraíba.

     

    Saiba mais - Bibliografia

     

    CHARTIER, Roger. Distinção e divulgação: a civilidade e seus livros. In: ______. Leituras e leitores na França do Antigo Regime. São Paulo: UNESP, 2004.

    ELIAS, Nobert. O processo civilizador: Uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994. 

    PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas: o detetive e o urbanista. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002.

    REVEL, Jacques. Os usos da civilidade. In: ARIÈS, Philippe e CHARTIER, Roger (org). História da Vida Privada: Da Renascença ao Século das Luzes. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.