No templo dos heróis

Luigi Bonafé

  • Eram duas horas da madrugada quando Joaquim Nabuco (1849-1910) começou a sentir uma vertigem. A cama parecia balançar e tragar seu corpo no mesmo movimento. Tinha a sensação de perder definitivamente A chegada do cortejo ao Palácio Monroe. O local foi escolhido por representar o ideal de um Brasil civilizado e para realçar o papel desempenhado por Nabuco nas relações internacionais.os sentidos. Pensava estar, enfim, esmorecendo. A vibração da cama o impedia de se entregar a divagações. Ela parecia ter se virado sobre ele. “Morri!”, pensou. Evelina, que não descuidava do marido um só minuto, percebera o delírio e apressou-se em trazer alguns sais. Aquele acontecimento tinha ares de prenúncio, mas ainda não era a hora do primeiro embaixador brasileiro e líder abolicionista. Ele morreu poucos dias depois, vítima de congestão cerebral, em 17 de janeiro de 1910, aos 60 anos.

    Iniciava-se um período de grandes homenagens a Nabuco realizadas pelo governo brasileiro. O Rio de Janeiro, então capital federal, guardou três dias de luto e foi palco de um solene funeral sem enterro. Não eram honrarias despropositadas. Amplamente reconhecida, a trajetória pública de Nabuco servia à jovem República brasileira que estava em busca de legitimação. O regime pretendia colocá-lo definitivamente no panteão dos heróis nacionais.
    Em sua vida pública, tinha sido três: líder abolicionista, intelectual consagrado e diplomata a serviço da República. Uma nomeação que se deu apesar do monarquismo assumido de Nabuco [ver RHBN nº 45, junho de 2009]. Morto, passou a ser objeto de um culto cívico que enfatizava a última fase de sua trajetória pública, dedicada à promoção de uma “aliança especial” entre Brasil e Estados Unidos, marca da chancelaria do barão do Rio Branco.

    Seu último posto no exterior foi o de primeiro embaixador do Brasil na capital norte-americana. Por isso estava lá quando faleceu. Entre a morte, em Washington, e o túmulo, em Pernambuco, os restos mortais de Nabuco passariam por um périplo intercontinental que nos diz menos sobre o herói do que sobre o regime que o consagrou. Em busca de legitimidade, a República buscava criar um panteão cívico de heróis nacionais por meio de cerimônias fúnebres grandiosas nas ruas do Rio de Janeiro. Outros políticos e homens de letras, contemporâneos de Nabuco, já tinham merecido homenagens parecidas. Os funerais de Machado de Assis, em 1908, do ex-presidente Afonso Pena, em 1909, ou do escritor Euclides da Cunha, nesse mesmo ano, também mereceram atenção especial das autoridades do Distrito Federal. Os jornais da época chamavam este tipo de cerimônia de “funerais cívicos”.

    Antes de iniciar esta jornada, as homenagens começaram já nos Estados Unidos, onde pela primeira vez um estrangeiro mereceu um funeral com honras de chefe de Estado. Até o presidente William H. Taft (1909-1913) estava presente à cerimônia. Num gesto inédito, ele ordenou que um navio de guerra do país, o cruzador North Carolina, comboiado pelo encouraçado brasileiro Minas Gerais, trasladasse o corpo para o Brasil. Meses depois, em novembro de 1910, o mesmo navio foi palco da Revolta da Chibata, evidenciando a permanência na Marinha de práticas associadas ao tempo do cativeiro que Nabuco lutara para extinguir.

    O caixão de Nabuco só chegaria ao país quase três meses depois de sua morte, no início de abril. O enterro seria no Recife, onde nasceu, mas o navio fez um desvio, ancorando no Rio de Janeiro. O clima na capital era de expectativa. A imprensa reproduzia detalhes de cada notícia recebida do North Carolina. Até que no dia 9 de abril de 1910, a Gazeta da Tarde estampou: “A ansiedade está satisfeita. O corpo de Joaquim Nabuco está de volta à pátria.”

    O cruzador norte-americano transpôs a barra da Baía de Guanabara logo pela manhã. Após a troca de salvas de tiros de canhão, prevista no protocolo, as bandeiras brasileira e americana foram içadas. Atraindo a atenção da multidão, que se aglomerava em busca do melhor ângulo para assistir à cena, o caixão finalmente desembarcou no Cais Pharoux (hoje, próximo à estação das barcas, na Praça XV). Mais de 150 policiais civis cuidavam da segurança no local. O corpo do ilustre morto vinha num esquife luxuoso: feito de carvalho e revestido internamente de bronze. A carreta do Arsenal de Marinha que o transportou havia sido forrada de crepe e flores naturais, e coberta com a bandeira brasileira.

    Partindo do cais, o cortejo fúnebre durou uma hora, seguindo em direção ao Palácio Monroe, onde o velório começou às 15 horas. O público que acompanhou a cerimônia era numeroso e variado: estudantes, bandas de música das Forças Armadas e, entre muitos outros grupos, uma grande comissão da Caixa Emancipadora Joaquim Nabuco, que abria espaço na cerimônia republicana para empunhar os estandartes usados no tempo da propaganda abolicionista, como que a ecoar pelas ruas da nova capital a lembrança da campanha que notabilizara Nabuco no Império. Os dois filhos de Nabuco também estavam presentes: Joaquim e Mauricio, que trazia a espada e o chapéu de gala do pai. A chuva fina e as marchas fúnebres executadas completavam o clima de luto. O lugar do velório era o espaço central dos funerais de heróis nacionais durante a Primeira República (1889-1930). O corpo deveria ficar exposto à visitação num local que simbolizasse a figura do homenageado. Convertido em panteão transitório do primeiro embaixador da República, o Palácio Monroe não havia sido escolhido à toa. Era um belo e moderno edifício erguido na Avenida Central da capital da República, inaugurado menos de quatro anos antes, na presença do próprio Nabuco. O projeto, assinado pelo engenheiro-arquiteto militar Francisco Marcelino de Souza Aguiar, foi concebido e executado como produto de exportação. Fez parte do Pavilhão do Brasil na Exposição Internacional de Saint Louis (1904), no Missouri, que comemorava o centenário da incorporação da Louisiana ao território norte-americano. De estilo eclético, tinha 18 metros de altura e cerca de 30 toneladas. Na ocasião, recebeu o Grande Prêmio Medalha de Ouro de arquitetura: era a primeira vez que uma obra  brasileira obtinha esse tipo de reconhecimento internacional.

    O prédio se inseria numa diretriz mais ampla da política externa brasileira, sob o comando do barão do Rio Branco (1845-1912), de promover uma imagem civilizada do Brasil no exterior, o que alguns autores já denominaram de “diplomacia do prestígio”. Uma imagem, aliás, encarnada pelo próprio Joaquim Nabuco – homem alto, elegante, poliglota, sedutor, aristocrático e branco. O Palácio Monroe e o primeiro embaixador brasileiro eram, neste sentido, faces da mesma moeda, já que serviam à mesma causa: apresentar ao mundo as credenciais de um país civilizado, onde era desnecessária a empresa “civilizatória” a que os países imperialistas se dedicavam em outras partes do globo.

    O primeiro pavimento do Monroe, símbolo do pan-americanismo e da República brasileira, foi todo revestido de negro para receber o corpo embalsamado de Nabuco. No centro do salão, foi erguida uma espécie de altar cívico, sobre o qual repousava o caixão. Acima dele havia o retrato do “ilustre extinto”, ladeado por duas bandeiras do Brasil. As faixas de veludo e crepe preto e os focos de luz conferiam um aspecto suntuoso ao local. Quatro mil pessoas passaram pelo velório durante os três dias em que o corpo de Nabuco ficou em exposição.

    Após duas noites, haveria mais um cortejo fúnebre. No dia 11 de abril, o caixão foi levado à Catedral Metropolitana, onde foram realizadas as exéquias públicas. A decoração da catedral estava ainda mais apurada do que a do Palácio Monroe. Da nave da igreja se erguia um catafalco (estrado onde fica a representação de um morto a quem se deseja prestar honras) apoiado sobre quatro colunas revestidas de veludo negro e galões dourados, em cuja base se entrelaçavam as iniciais J.N.

    Um último rito ainda teria lugar no terceiro dia dos funerais de Nabuco: pela manhã, realizou-se uma sessão cívica no Theatro Municipal. Mas, ao contrário da tônica predominante nos outros eventos, a iniciativa e a execução da cerimônia ficaram a cargo quase exclusivo dos conterrâneos do herói da Abolição. O “funeral cívico” do embaixador republicano foi o espaço que restou à face “abolicionista” de Nabuco.

    Os restos mortais de Joaquim Nabuco ainda permaneceram na Catedral até a tarde do dia seguinte. Finalmente, por volta das 15 horas, o corpo foi encomendado. Com a presença do barão do Rio Branco, do embaixador americano e de outros políticos proeminentes, formou-se um novo cortejo, em direção ao Arsenal de Marinha.

    A carreta que levava o caixão foi então conduzida por marinheiros até a amurada do cais, sendo o corpo transportado para um escaler, uma pequena embarcação que foi, por sua vez, rebocada por uma lancha até o navio de guerra Carlos Gomes. Enquanto isso, o povo se mantinha de chapéu na mão. Era a última despedida da capital da República.

    O caixão foi erguido lentamente, mas um último percalço acrescentou mais dramaticidade ao ato: um dos cabos do guincho se quebrou, e ele só não caiu no mar graças ao esforço dos marinheiros, que o escoraram.

    Já era noite quando o Carlos Gomes partiu em direção ao Recife, conduzindo Nabuco à cidade onde nasceu. Aí se encerraria o longo caminho do primeiro embaixador brasileiro e o terceiro funeral do herói republicano, sepultado na terra onde se notabilizara pela luta em prol da libertação dos escravos.

    Nabuco foi consagrado pela República a partir de um olhar voltado para o papel histórico que desempenhou nas relações internacionais do país. As cerimônias fúnebres no Rio de Janeiro reforçaram esta imagem que, no entanto, não permaneceu. Passados cem anos de sua morte, ele ainda é lembrado como um dos líderes mais destacados da campanha abolicionista, sobretudo em Pernambuco, ou como autor de clássicos do pensamento social brasileiro. Talvez o ano de 2010 seja bom para se pensar também esta outra face, republicana e pan-americanista, do herói da Abolição.

    Luigi Bonafé é professor do Curso Clio e autor da tese “Como se faz um herói republicano: Joaquim Nabuco e a República” (UFF, 2008).

    Saiba Mais - Bibliografia

    ALONSO, Angela. Joaquim Nabuco: os salões e as ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
    CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. [1ª ed.: 1990]
    GONÇALVES, João Felipe. “Enterrando Rui Barbosa: um estudo de caso da construção fúnebre de heróis nacionais na Primeira República”. Estudos Históricos, vol. 14, nº 25, p. 135-161, 2000.
    KRAAY, Hendrik. “Definindo a nação e o Estado: rituais cívicos na Bahia pós-Independência (1823-1850)”. Topoi, n° 3, 63-90. Rio de Janeiro: 2001.