Maria Rosimar Araújo é cordelista de corpo e alma. Sua paixão pelos versos é tão grande que faz questão de passá-la adiante, não só produzindo livretos nas feiras de Juazeiro do Norte, mas usando-os em sala de aula. Durante décadas, a cearense ensinou História a turmas do ensino fundamental e jamais hesitou em usar a literatura de cordel como instrumento de apoio – seja para falar dos engenhos de açúcar do Brasil Colônia ou para contar um pouco da participação do país na Primeira Guerra Mundial. Cordel, como ela lembra, “dá muito pano pra manga”. Hoje, Rosimar ainda leciona, mas de forma diferente: comanda oficinas que ensinam a teoria e a prática da literatura popular, aliando-as a outras disciplinas, como Artes, Português, Estudos Regionais e Afrodescendentes, dependendo do conteúdo do material utilizado.
“Ói só [conta a cearense caprichando na oralidade, como todo bom cordelista], não existe professor de cordel. Você pode trabalhar a literatura em sala, mas não há um diploma em cordel. Porque o cordel vem de dentro da alma, é uma coisa sagrada. Quando a gente diz que há um facilitador para um trabalho de cordel, está pensando em ensinar a gramática, as sílabas métricas. Mostramos como ele funciona, sua tradição, e depois incentivamos os alunos a fazerem por eles mesmos o que aprenderam”.
A iniciativa de Rosimar vem dando certo, mas não é a única bem-sucedida em Juazeiro, tampouco no Brasil: a cada ano, mais escolas públicas levam a literatura de cordel para junto dos alunos, principalmente por meio de trabalhos multidisciplinares, mediados por salas de leitura e bibliotecas. Muitas delas têm folhetos, mas não todas. Afinal, escolas públicas abastecem suas prateleiras por meio de editais, e adquirir livros é mais fácil do que comprar com verba extra o folheto, geralmente impresso de forma amadora.
Percebendo isso, algumas editoras decidiram investir na ideia e vêm encomendando poemas escritos por cordelistas contemporâneos, transformando-os em livros paradidáticos – prontos para serem inscritos em solicitações de compra de Secretarias de Educação. Afinal, desde que a cultura popular brasileira começou a ser valorizada pela academia e incentivada nas práticas de ensino – coisa de 30 anos para cá –, o mercado editorial acompanhou o movimento, republicando, por exemplo, autores que se importavam com o tema e que antes eram renegados pelos intelectuais, como Gilberto Freyre e Câmara Cascudo – sucessos de venda nas livrarias hoje. O cordel parece seguir pelo mesmo caminho.
Nessa trajetória, o papel pardo dobrado em formato 12 x18 cm foi substituído pelo papel cuchê em tamanho A4. E o mesmo aconteceu com a ilustração – a rudimentar xilogravura que reflete os traços duros na madeira foi trocada por desenhos feitos digitalmente, com cores vibrantes e contornos levemente arredondados, tudo feito sob medida para atrair o leitor jovem. Além disso, alguns títulos – que inclusive são inseridos em coleções temáticas – vêm acrescidos de um material de apoio ao professor, com dicas de como o conteúdo pode ser utilizado em determinadas turmas. Junto com o toque de requinte, o preço recebe uma pitada de sal: se um folheto tradicional, rodado em 1.000 exemplares, custa entre R$ 1,00 e R$ 5,00, o livro industrializado, nas prateleiras de uma livraria, pode ser comprado por preços que variam de R$ 30,00 a R$ 50,00, sendo impresso pelas editoras em tiragens de mais ou menos 3.000 unidades. Para circular nas escolas, este número cresce conforme a demanda.
O livro paradidático, no entanto, não é um vilão. Pelo contrário. Ele ajuda a levar a cultura popular e o gosto pela leitura a muitos jovens e crianças, se utilizado da maneira correta. Ações que dão certo não faltam. Na periferia de São Paulo, no bairro de Cidade Tiradentes, por exemplo, a professora Ana Maria Diniz decidiu trabalhar, na sala de leitura de sua escola, a literatura de cordel como apoio à alfabetização de jovens e adultos. Utilizando tanto os folhetos quanto livros da biblioteca, Ana Maria estimulou a preservação das tradições de seus alunos, sendo homenageada pela Prefeitura de São Paulo, em 2009, com o prêmio Professor Destaque.
Naquela época, ela tinha 350 alunos, a maioria nascida no Nordeste. Não foi difícil introduzir o cordel como instrumento principal da alfabetização. “Os alunos nordestinos vêm para a escola, e uma das coisas que percebemos é que alguns querem entender sua identidade. Muitos têm vergonha de ser retirantes. E o cordel tem a linguagem falada, conta histórias que estavam acostumados a ouvir, fala de paisagem que estavam acostumados a ver, as roupas, as tradições. E o mais legal é que eles perceberam que a escola dá valor a isso, a ponto de a norma culta reconhecer essa literatura matuta. Eles se identificaram muito rápido”.
O processo foi longo: três meses. Na sala de leitura, Ana Maria trabalhava com compreensão dos poemas em grupo, e na sala de aula, outra professora dirigia a produção de textos coletivos. Nas classes de Informática, eles pesquisavam mais sobre os autores favoritos. Verso vai, verso vem, Ana Maria decidiu sugerir às turmas que convidassem um dos poetas mais estudados para visitá-los na festa de fim de ano: Moreira de Acopiara. “Eles acharam ótimo, mas disseram que gente famosa não ligava para pobre, e que Moreira não viria”, lembra. Mesmo assim, os alunos mandaram cartas.
Moreira recebeu o convite e decidiu responder logo, em forma de poesia, que estava confirmado no evento:
Olá, professora Mara!
Diga para os seus pupilos
Que podem ficar tranquilos,
Que eu vou me preparar para
Botar um riso na cara,
Esquecer a crise ingrata
E essa correria chata
Que às vezes nos descontrola,
Para ir à sua escola.
Basta só que marque a data.
Em meio a risadas, o cordelista lembra o episódio: “Eles não esperavam que eu respondesse em versos. Foi sensacional. Cheguei lá e fui tratado como celebridade. Tinha comida nordestina, declamação de poesia, uma coisa muito legal”.
Moreira é natural da cidade que lhe dá o nome: Acopiara, no Ceará. O cordelista escreve desde adolescente e tem mais de 200 títulos publicados em folhetos e 18 obras em livros. Ele conta que, antes de começar a trabalhar com os alunos, Ana Maria encomendou um kit com obras suas – folhetos e livros. E acredita que este intercâmbio de plataformas de conhecimento só tem a ajudar a educação no país.
Outro cordelista muito procurado pelas editoras é Gonçalo Ferreira da Silva, presidente da Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC). Um de seus títulos, Naturalismo, foi comprado pelo Programa Minha Biblioteca, da Prefeitura de São Paulo, e é usado para trabalhar tanto História quanto Ciências e Literatura nas escolas. Essa obra, por exemplo, traz duas histórias, “Charles Darwin” e “A evolução do mundo”. Com elas, o professor pode explorar o conteúdo relacionado à Biologia, procurando explicar a vida como um processo evolutivo, ou explorar a forma como ele é apresentado – por meio dos versos na métrica do cordel. Antes de virar livro, Naturalismo surgiu em forma de livretos, vendidos a R$ 1,00 cada título, em feiras Brasil adentro e na ABLC, onde, aliás, ainda podem ser encontrados. A escrita permaneceu; o que mudou foi a forma. E o preço, claro.
Sem cerimônia, Gonçalo explica por que as obras fazem sucesso. “É muito oportuno isso de ir para a escola. Fazemos numa linguagem sem manteiga, muito simples. Para qualquer criança ler, em várias disciplinas da escola. Porque criança não tem paciência pra coisa muito grande; tem que ter uma escrita atraente, um desenho bonito, e a gente junta isso num produto só”, diz.
Mas nem toda poesia é literatura de cordel, e como identificá-la sem o seu suporte mais tradicional? A pesquisadora Ivone Maya, da Fundação Casa de Rui Barbosa, atenta para a oralidade dos versos e para a métrica. “Cada poeta escolhe sua métrica; geralmente as estrofes são feitas em quadras, porque é mais fácil. Mas a oralidade é o que predomina, porque a literatura de cordel é feita para ser lida em voz alta, coletivamente”, afirma.
Então, se tiverem textos elaborados dentro das regras, os novos livros podem ser considerados literatura de cordel, apesar da nova apresentação e de outro preço. E é por isso que o trabalho com eles deve ser muito cuidadoso. O professor precisa se preparar e tentar comparar o novo suporte com o tradicional, contextualizar o material, perceber as relações entre a cultura escrita e a oral, explicar de onde vem, e não apenas estudar o conteúdo ali apresentado, embora isso também seja uma vertente possível. Como dizia a professora Rosimar, de Juazeiro, o cordel “dá muito pano pra manga”.
SAIBA MAIS:
MAYA, Ivone da Silva Ramos. Recortes contemporâneos sobre o cordel. Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa, 2008.
SILVA, Gonçalo Ferreira da. Naturalismo. Rio de Janeiro: Rovelle, 2009.
Internet:
www.casaruibarbosa.gov.br/cordel/
Nordestino, sim sinhô
Alice Melo