Eilense (balanço) e eilenkya (balançar), dewense (débito) e dewenkya (dever).Pasankya (passar), nasenkya (nascer), velnankya (governar). Agora está mais fácil compreender a língua iatê, falada há mais de 500 anos pelos índios fulniôs, que hoje se resumem a uma tribo de cerca de 7 mil pessoas, localizada no sudeste de Pernambuco. Se os falantes são poucos, o iatê se garante para a posteridade graças ao trabalho do comerciante e estudante Aluízio Caetano de Sá, membro da tribo, que lançou recentemente o dicionário Iatê-Português Português-Iatê.Composto de 3.980 verbetes, foi publicado pela Associação de Imprensa de Pernambuco, com tiragem de 500 exemplares, disponíveis nas principais livrarias.
A ideia é não se limitar ao papel, mas preservar a fala da língua iatê – ou Yaathe, que significa justamente “nossa fala” – entre os fulniôs mais jovens, que estão começando a trocá-la pelo português. O projeto ganhou proporções maiores: para o futuro, Aluízio, que está concluindo o curso de Teologia na Universidade Federal de Pernambuco, pretende publicar também uma gramática pedagógica junto com a gravação do dicionário em áudio, para facilitar seu uso nas salas de aula da aldeia.
“Eu me preocupei em resgatar a língua, para não acontecer como em outras tribos do Nordeste, onde quase ninguém fala mais a língua da tribo, só o português”, conta Aluízio. E fala por experiência própria: em 1960, aos 16 anos de idade, foi morar e estudar em Recife e percebeu, em suas viagens de volta à tribo, que os jovens ameaçavam perder o contato com o iatê. Seu trabalho começou há quase três décadas, com uma coletânea de palavras em iatê. Entrou em contato com a Fundação Nacional do Índio, que o encaminhou ao Núcleo de Estudos Indigenistas da Universidade Federal de Pernambuco, onde deu continuidade ao projeto com o apoio da pesquisadora Adair Pimentel Palácio. A parceria resultou na elaboração da primeira edição do dicionário, apenas em Iatê-Português, lançado em 2000 pela Editora Universitária UFPE, com tiragem de 1 mil exemplares e aproximadamente 3 mil verbetes. A nova versão, além de quase 1 mil verbetes a mais, inclui palavras em iatê criadas a partir do contato com a língua portuguesa.
“Quando desaparece uma língua, desaparece com ela uma forma de ver o mundo”, reforça José Ribamar Bessa Freire, professor da Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Segundo ele, o ato de dicionarizar uma língua é uma medida que contribui para tonificá-la. Os primeiros dicionários feitos no Brasil também eram bilíngues. No período colonial, sua produção cabia aos padres jesuítas, como um gesto para garantir relações amistosas com os indígenas, e trazia o benefício adicional de facilitar sua catequese. Segundo Bessa Freire, um exemplo clássico é o dicionário do padre peruano Montoya (1585-1652), de Castelhano-Guarani-Castelhano, conhecido como “O Tesouro da língua guarani”, um dos primeiros de língua indígena falada no país. “Dicionários bilíngues são sempre desafios. Não interessa saber o significado da palavra, mas o que a pessoa quer dizer com aquilo. O dicionário tem que ser complementado com conhecimentos sobre a cultura daquela língua”, completa o pesquisador.
Nossa fala, o iatê
Déborah Araujo