Nosso verbo ancestral

Angélica Fontella

  • Arquiteto de formação, Antônio Geraldo da Cunha já colaborava há 24 anos para a Revista Brasileira de Filologia e editava obras sobre o assunto há mais de uma década, quando, em 1979, ingressou no Setor de Filologia da Fundação Casa de Rui Barbosa. Sua missão era coordenar e desenvolver o Vocabulário histórico-cronológico do português medieval (VPM). Depois de 35 anos e quase 170 mil vocábulos reunidos, a obra foi lançada em outubro passado. É a primeira vez que estudiosos terão acesso a um compilado – feito no Brasil – de palavras seculares, seu uso em frases de época e suas correspondentes atuais.

    Antes mesmo de a Casa de Rui Barbosa assumir o projeto, Antônio Geraldo da Cunha já produzia as fichas de verbetes – parecidas com as de arquivo de bibliotecas – que norteariam o trabalho dos 51 profissionais que passaram pelo projeto do VPM ao longo dos anos. “Cada ficha corresponde a uma palavra com abonação – trecho onde foi encontrada a palavra secular – e uma das preocupações era – e é – preservá-las e protegê-las”, explica José Alminto, diretor do Centro de Pesquisa da Casa.

    Há vocábulos dos séculos XIII, XIV e XV, e a ideia é contribuir para o entendimento da evolução histórica do léxico, estabelecendo elos da cadeia evolutiva que, a partir do latim vulgar, chegou até o português atual. Para tanto, “tínhamos fontes transcritas em vários níveis, pegávamos publicações antigas e transcrições que guardassem os vestígios do formato antigo”, conta José Alminto. O Vocabulário ensina, por exemplo, que o verbo “desagradecer” (do século XIV) foi sinônimo de desagradar, como na frase catalogada em um códice galego do século XIV: “desgradeceu lle muyto por que esto fora feyto sen sseu outorgamento”. Sílvio de Almeida Toledo Neto, professor de Filologia da USP, enaltece a iniciativa: “A contribuição é muito grande, pois traz a público os resultados de uma pesquisa ampla e meticulosa, com base em edições fidedignas de textos da época. Será de consulta indispensável a todos os pesquisadores dos séculos abarcados. São raras as publicações que reúnem tanta informação, criteriosamente preparada, sobre o vocabulário desse período”.

    Até a obra de dois volumes ficar pronta, recebeu financiamentos de diferentes órgãos e ganhou versões em outras plataformas, como um CD-Rom lançado em 2000. Os mil exemplares impressos agora serão distribuídos gratuitamente para institutos brasileiros e internacionais de referência no assunto. A intenção é disponibilizar na internet o banco de dados que gerou a obra. Toda a equipe envolvida faz questão de homenagear o idealizador do projeto, que não viveu para ver publicado seu Vocabulário. Antônio Geraldo da Cunha faleceu em 1999, na fase de informatização das fichas.

    José Alminto lembra que, nos anos 1990, Antônio Cunha já pensava em produzir a obra para proteger as fichas. (Imagem: Divulgação)