Notícias de uma obra perdida

  • Clique na imagem para ampliar.Esta carta foi enviada em 1716, de Londres, por D. Luís da Cunha (1662-1749), embaixador do rei D. João V junto à corte da Inglaterra, para João de Almeida de Portugal, 2º Conde de Assumar.

     

    Escrita com um tipo de letra cursiva muito difundida em Portugal na primeira metade do século XVIII, utiliza palavras abreviadas com letras sobrepostas, recurso bastante recorrente nos pronomes de tratamento. É o caso de Exmo Sor (Excelentíssimo Senhor) e de pa  (para). Há casos de abreviatura por contração ou síncope, nos quais são suprimidas algumas letras intermediárias da palavra, como em supplem.to (supplemento), bem como abreviatura por suspensão, como em porq. (porque).

    As palavras muitas vezes encontram-se em sua grafia arcaica: “foy” (foi), “hum” (um), “he” (é), “dous” (dois), “mayor” (maior). Isto acontece sobretudo com os verbos, cujas flexões ainda não tinham uma grafia estabelecida: “faltão” (faltam), “levão” (levam), “servillo” (servi-lo). Consoantes e vogais dobradas também estão presentes em algumas palavras, como “manhãa” e “occaziões”.

    O caráter de cunho particular da carta – menos solene – pode ser constatado na fórmula de fechamento utilizada: “Muito amigo e captivo”, colocada em seguida à outra expressão típica dessa tipologia documental, a saudação “A Pessoa de Vossa Excelência guarde Deus muitos anos”.

    O documento encontra-se transcrito em um códice manuscrito em papel (cartáceo) com 280 folhas e 37 cm de altura, hoje conservado na Biblioteca Nacional de Lisboa. O códice é um copiador da correspondência de D. Luís da Cunha. Nele estão anotadas, pelo próprio punho do diplomata português, as cartas por ele enviadas entre 1716 e 1718. Escritas em Haia e Londres, essas cartas se destinavam ao 2º Conde de Assumar, João de Almeida de Portugal, e ao Secretário de Estado de D. João V, Diogo de Mendonça Corte Real. Tratavam, sobretudo, de assuntos diplomáticos.

     

    Marília de Azambuja Ribeiroé professora da Universidade Federal de Pernambuco.

     


    Um clássico quase desconhecido

    D. Luís da Cunha era embaixador extraordinário em Londres na época em que redigia duas das mais importantes obras já escritas por um diplomata português: as Memórias da paz de Utrecht e a Tradução e paráfrase dos tratados de paz e comércio celebrados em Utrecht, Baden e Anvers. A primeira delas, que deveria permanecer secreta por razões políticas, teria sido apresentada a D. João V. A segunda, de caráter mais didático, era destinada à publicação. Referem-se a esta última os “dous tomos” e o “supplemento”, que, segundo a carta aqui publicada, D. Luís já havia enviado a Lisboa.

                Paradoxos da história: as secretas Memóriasencontram-se hoje publicadas, enquanto a “pública” Tradução e paráfraseque conhecemos não corresponde nem mesmo à primeira parte do que seria a obra. Possivelmente ficou inacabada e encontra-se dispersa em manuscritos em várias bibliotecas da Europa, esperando por uma edição definitiva.


    Transcrição do documento:

    Excelentíssimo Senhor

     

    Recebi duas cartas de Vossa Excelência e me faltão as expressões para lhe agradecer a boa vontade com que quer patrocinar o meu descanço.

    Como a manhâa he a posta do Mar tera Vossa Excelência com mais brevidade a relação do que aqui se passa para me achar razão.

    Não sei onde foy dar consigo o navio que levava dous tomos do meu trabalho, e assim espero que também haja chegado o que levava o supplemento.

    Pouco tenho adiantado a obra que emprendi; porque assistencia da Corte, e andar atraz dos seus Ministros levão a mayor parte do tempo: o que terei por melhor empregado sera o em que Vossa Excelência me der occaziôes de servillo. A Pessoa de Vossa Excelência guarde Deus muitos anos. Londres 22 de Junho de 1716.

     

     Ao lado direito do texto: Perdoe Vossa Excelência o mao sinal, porque cortei hum dedo.

                                                                                                     Muito amigo e captivo

                                                                                                     D. Luís da Cunha

    Excelentíssimo Senhor Conde de Assumar