Ele faz parte da geração de historiadores portugueses que, após colherem os cravos que floresceram no 25 de Abril, redescobrem o Brasil algumas décadas depois. Hoje, Nuno Gonçalo Monteiro é Investigador Principal do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e Professor Convidado do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa - ISCTE, tendo-se doutorado em História pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova. Especialista em história social e institucional do Antigo Regime, tem-se dedicado à história das elites.
Nessa área, não tardou a descobrir a importância da nobreza em Portugal – ou melhor, das nobrezas, conforme corrige nesta entrevista concedida à Revista de História. Na entrevista, ele mostra também como a história de Portugal se cruza de maneira original com a do Brasil, que teve sua alta administração exercida pelas grandes casas aristocráticas portuguesas - o que não ocorreu em nenhuma das colônias das demais monarquias européias.
Nuno Monteiro vem ao Brasil com frequência e, ao lado de outros historiadores portugueses, examina a questão colonial e dialoga intensamente com os historiadores brasileiros. Fala com entusiasmo dos trabalhos que se desenvolvem aqui, em contraste com a situação da historiografia portuguesa, que assiste a dramática diminuição dos estudantes. Fato melancólico para quem, desde as fileiras estudantis, integrou a grande onda de entusiasmo que fez florecer os cursos de História em Portugal depois da Revolução dos Cravos.
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REVISTA DE HISTÓRIA O que significou a Revolução dos Cravos para os historiadores da sua geração?
NUNO GONÇALO MONTEIRO Eu faço parte da primeira geração que entrou para a Faculdade de Letras de Lisboa depois da Revolução dos Cravos (25 de abril de 1974). Isso foi em 1975, pois no ano da Revolução os cursos não abriram. Nós éramos mil, e em cada um dos anos seguintes entraram mais 700, 800 alunos. Muita gente que nunca teria ido para História em outra situação e que tinha vivido, enquanto jovem (no ensino secundário, por exemplo), experiências de oposição à ditadura. A atração pela História surgiu um pouco como conseqüência de uma experiência pessoal, com forte fundo político. Esta explosão no número de alunos foi acompanhada do surgimento de novas universidades nos anos seguintes, dentro e fora de Lisboa.RH O que mudou na forma de se pensar a História a partir do 25 de abril?
NGM O Estado Novo em geral foi muito duro em termos de controle, e por isso a historiografia sobre a época moderna tardia e sobre a época contemporânea surgiu à margem da universidade oficial. Basta lembrar que nomes de gerações anteriores bem conhecidos no Brasil – como Joaquim Barradas de Carvalho, que esteve na USP – desenvolveram o essencial das suas carreiras longe das instituições oficiais portuguesas até o 25 de abril. Isto faz uma grande diferença entre o contexto português e outros cenários de regimes autoritários, como a Espanha, onde havia historiadores ligados às correntes historiográficas internacionais mesmo na universidade franquista. Nos últimos anos do Estado Novo começam a existir umas brechas. O próprio professor Borges de Macedo, apesar de simpatizante do Estado Novo, é uma pessoa intelectualmente importante e que marcou historiadores – alunos que nada tinham a ver com o regime. O mais importante é que nas instituições da universidade oficial quase só há lugar para a historiografia medieval, com um lastro antigo; a historiografia sobre os descobrimentos e a expansão portuguesa muito ligada às visões ideológicas do próprio Estado Novo. Muita gente vai estudar fora de Portugal, nomes como Vitorino Magalhães Godinho, Manuel Villaverde Cabral, Miriam Halpern Pereira, Valentim Alexandre e outros. -
RH Como isto marcou a sua geração?
NGM Em termos quantitativos e qualitativos, minha geração é muito significativa, com nomes importantes, como Jorge Pedreira, Bernardo Vasconcelos de Sousa, Francisco Bettencourt, Antonio Costa Pinto. Tivemos poucos professores com doutorado. Fomos uma geração quase autodidata, mas que prolongou na História a paixão pela leitura, pelo lado intelectual, que nos vinha da nossa própria experiência política, e que teve poucos mestres.RH Vocês estudavam a história das colônias, liam os historiadores brasileiros?
NGM Curiosamente, os temas de história colonial, Brasil, África, Oriente, são temas claramente minimizados no meu tempo de faculdade por boa parte de nós, exatamente porque associávamos a historiografia destes temas ao Estado Novo, à ditadura e à guerra colonial. Nessa geração, praticamente não houve teses sobre história colonial. De fato, durante mais de uma década, essas circunstâncias nos afastaram de temas que hoje em dia aparecem como absolutamente centrais. Este é um aspecto interessante e talvez não muito compreendido. O livro brasileiro que teve mais impacto nos estudantes do meu tempo é, de fato, o de Fernando Novais (Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808)) –, não o livro todo, mas a versão editada em Portugal, em 1975, com o título Estrutura e a Dinâmica do Antigo Sistema Colonial. Mas, em termos gerais, diria que a mais notória influência brasileira foi, sem dúvida, a da obra de Gilberto Freyre, adotada oficiosamente pelo Estado Novo nos anos 1960, e que veio marcar a produção associada ao regime.RH Como um estudante engajado resolveu se tornar um grande especialista na história das elites?
NGM Quando comecei a me interessar por história agrária medieval, um dos meus temas mais relevantes era a crise dos séculos XIV e XV, nas suas dimensões econômicas e sociais, articulada com as revoltas sociais. Depois me apaixonei pelo tema da “contra-revolução camponesa”. Ou seja, como, em Portugal, contra os esquemas herdados de certas visões ortodoxas da Revolução Francesa, a massa da população rural parecia hostilizar a revolução liberal. Depois, por sugestão de Miriam Halpern Pereira e muito influenciado pelo historiador francês que trabalhou sobre o mundo rural português, Albert Silbert, com quem me correspondia, fui estudar o problema dos direitos senhoriais, direitos de foral no caso português, em 1820-1834. Descobri, assim, revoltas anti-senhoriais, só que em zonas que, em regra, não eram as mesmas onde havia miguelismo ou contra-revolução popular. Foi este o tema do meu equivalente ao mestrado (1986). Ao estudar o regime senhorial, fui confrontado com as instituições eclesiásticas e as grandes casas aristocráticas que recebiam esses direitos. A minha tese complementar já foi sobre as nobrezas portuguesas no início do século XIX. -
RH Nobrezas ou nobreza portuguesa?
NGM É muito importante destacar uma coisa: ao estudar a questão agrária em Portugal e depois as nobrezas, descobri que, no fundo, não há nobres, não há nobreza. Há nobrezas, no plural. No Reino, no Antigo Regime existiam – e aqui devo dizer que a obra de Antonio Hespanha, os seus primeiros trabalhos dos anos 1980 foram importantes – diferenças fundamentais nos padrões de autoridade em relação ao mundo contemporâneo. O Antigo Regime era um mundo onde o direito consagrava uma ordem jurídica, hierárquica e corporativa. É um mundo onde existe a instituição vincular (morgadio), a enfiteuse, os direitos de foral – completamente diferente e extremamente complexo. Mas, sendo uma categoria consagrada, uma forma de classificar as pessoas, a verdade é que abrange grupos totalmente díspares. Um vereador de uma Câmara era, para certos efeitos, considerado nobre. Tal como um conde ou um marquês, eles se reputavam nobres. Mas não se sentiam parte do mesmo grupo nem eram vistos como tal. Havia, pois, nobrezas, hierarquizadas e diferenciadas: uma nobreza simples – em que entram as “nobrezas da terra”, bastante numerosas; uma fidalguia muito mais restrita, e, por fim, a primeira nobreza da monarquia – desde 1640, toda a viver em Lisboa, num grupo fechado e reduzido (entre meia e uma centena de casas), com comportamentos rígidos. Totalmente dominado, diga-se de passagem, pelo objetivo de engrandecer as suas casas no serviço ao rei.RH Como definir a “casa senhorial” ?
NGM A casa é, fundamentalmente, um conjunto de bens simbólicos e materiais, a cuja manutenção e ampliação se submetem todos os que dela fazem parte. A casa aristocrática pode ter como referente um objeto físico específico (morgado, senhorio etc.), mas não se confunde com ele. Também não se confunde com uma forma de transmissão dos bens, com o morgadio (em que o filho varão herda a totalidade dos bens vinculados), embora ele seja essencial. É, antes, um sistema de valores, um código de conduta. A idéia central é que todos – sucessores, filhas e filhos segundos – devem colaborar para o engrandecimento da casa na qual nasceram. E que os seus destinos – o casamento ou o celibato eclesiástico – devem se sujeitar a esse objetivo. A tendência, desde o século XVII, é para um alargamento da base e para a cristalização no topo. Na base, um amplo grupo de pessoas que gozam de algum tipo de nobreza. No topo, um grupo incrivelmente fechado e endogâmico, que assume a representação do estatuto do grupo, que monopoliza recursos centrais da monarquia. -
RH Nobre não é tudo igual?
NGM Não. A singularidade portuguesa reside no fato de essa nobreza simples não se transmitir apenas pelo sangue, mas pelos graus acadêmicos (todos os licenciados são juridicamente nobres), pelo desempenho de ofícios (todos os vereadores de Câmaras, oficiais do exército e das ordenanças o são também) ou até pelo modo de vida: “viver nobremente, com bestas e criados” constitui, para certos efeitos, prova de nobreza.RH Portugal democratiza a nobreza ?
NGM Neste plano, indiscutivelmente, o que se chama burguesia na França corresponde em Portugal à nobreza simples. A banalização desse estatuto – corporificado, por exemplo, na concessão de hábitos de cavaleiros das Ordens – chegou a tal ponto que houve quem dissesse, no início do século XIX, que em breve todos os habitantes do reino seriam, de algum modo, nobres! Por isso, os fidalgos antigos, da Corte e das províncias, procuravam distinguir-se, manter e perpetuar outros signos de distinção. Subsiste até ao século XIX um arquétipo fidalgo, um ethos fidalgo, que não se confunde e procura se distinguir dessa banalização. O fidalgo, etimologicamente é o hijo de algo, filho de alguém, um estatuto supostamente herdado pelo sangue. Incluir a casa no serviço ao rei, de preferência na carreira das armas, resume um pouco isto tudo. Por isso, os negociantes, mesmo os de grosso trato, por mais que a legislação dissesse que eram nobres, nunca foram vistos como iguais pelos fidalgos.RH A condição de nobre impõe então uma distância do trabalho?
NGM O trabalho é incompatível com a nobreza. O desempenho do ofício do mecânico – que depende mais do corpo do que do espírito – o é sempre. Mas, de um certo patamar da nobreza para cima, espera-se que as pessoas tenham uma renda que as possa manter num ócio. É claro que ócio não é incompatível com o desempenho de função de comando militar, na casa real, ou com a presidência de um tribunal, ou qualquer coisa desse tipo, mas é incompatível, por exemplo, com o exercício de funções mercantis. O sistema central de valores ainda é militar; há essa abertura, mas essa abertura tende a desqualificar a nobreza simples. É importante para quem não tem, mas de um certo patamar já não chega. É preciso servir à Coroa para obtê-la. A cultura do serviço é uma cultura absolutamente central. Mas aqui é que surgem os tais estrangulamentos, os tais limites. Um nobre brasileiro, por mais rico que seja, não pode chegar a vice-rei, ofício que no século XVIII dava direito a ser feito conde. -
RH Que nobreza, afinal de contas, governa nos altos cargos do Brasil?
NGM São, no fundo, as grandes casas titulares do reino e algumas outras de primeira nobreza com elas aparentadas que preenchem todos os vice-reinados da Índia, do Brasil, todas as principais capitanias, e o aspecto interessante, ao contrário do que se poderia supor, é que as monopolizam cada vez mais ao longo do século XVIII. Mesmo naquelas novas capitanias, como Minas ou Goiás, que foram criadas no século XVIII, são geralmente governadas por membros da primeira nobreza.RH E o Brasil também foi capaz de criar sua própria nobreza? Seriam os “homens bons”?
NGM Bom, eu diria que, neste particular, estou a meter a foice em seara alheia. Tocqueville, no seu livro Da Democracia na América, partiu do princípio de que havia uma diferença matricial entre aquela e o Velho Mundo, a Inglaterra, que era o fato de lá não existir uma aristocracia. Podemos discutir se essa equação se aplica ao Brasil ou não. Outra idéia é que os “homens bons”, no Portugal medieval, destacam-se já. Nos municípios portugueses medievais há uma elite que não é fidalga, mas que já tem um lugar preponderante na respectiva administração. No século XVII, em parte porque emerge uma noção de nobreza política ou de ofício, já se intitulam a “nobreza da terra”. Essa contaminação “semântica” atravessa todo o espaço da monarquia portuguesa. Existe nas Câmaras do reino, como existe nas Câmaras do resto do império, sendo que nobreza e fidalguia não são a mesma coisa. O historiador Charles Boxer explica muito bem como na Câmara de Goa, no século XVII, havia lugares para nobres e outros para fidalgos. Portanto, no Brasil, muito variável de uns municípios para outros, existiram nobrezas da terra. Mas aqui eu insisto no plural. -
RH Finalmente, em 1808, com a vinda da Corte portuguesa, há um encontro entre a nobreza da terra e a do reino?
NGM É obvio que a presença da Corte no Rio a torna mais acessível às elites da colônia. Dito isto, D. João VI não conseguiu a fusão entre as elites do reino e as da colônia. A vinda da família imperial para o Brasil não significou a fusão entre a elite brasileira e a elite portuguesa. Por mais que a família real gostasse de cá estar, a nobreza da Corte que para cá veio quase se não casou com elites brasileiras. A aristocracia da Corte não assumiu, a elite central da monarquia não se tropicalizou.RH Mas com a independência política em 1822 e a fundação do Império, o que diferencia a nobreza do Brasil?
NGM O que é diferente é que ela não tem praticamente nenhum elo de continuidade com a nobreza portuguesa. A nobreza do império brasileiro tem títulos, mas nada tem a ver com a nobreza portuguesa do Antigo Regime. Isto é um aspecto importante, há títulos, mas não há elos de continuidade. Outros aspectos são muito similares a histórias européias do século XIX, o fato de uma parte serem as antigas elites locais que se deslocam para um centro, o fato de a mudança imperial ser uma forma de gerir as tensões regionais, o fato de os títulos terem sido, em alguns casos, vitalícios. Tudo isto são aspectos que são parecidos com histórias européias. Mas do século XIX, não do Antigo Regime. -
RH Afinal, se há tantas diferenças entre a nobreza portuguesa e o Brasil, o que tem merecido aqui o seu interesse?
NGM Fui me aproximando da historiografia brasileira por força do meu objeto de estudo; fui percebendo que o império era muito importante para o grupo que eu estudava. A maioria das casas aristocráticas portuguesas serviu ao império no século XVII e no século XVIII, o que não se passou com nenhuma outra aristocracia européia. Mas este tópico não se restringe à grande nobreza. As elites judiciais, as elites militares, as elites administrativas têm nos séculos XVII e XVIII uma circulação pelo império, no caso português, que praticamente não tem paralelo em nenhuma outra monarquia política européia. Isto tudo é bastante singular. As carreiras dos magistrados, uma parte substantiva delas, assim como carreiras mercantis, passam também pelo império. O império tem uma importância que, creio eu, não tem para mais nenhuma outra elite européia contemporânea. Mesmo trabalhando somente temas de Portugal, o império cruza os nossos destinos. A forma de se passar para a nobreza titular era partir para o Brasil. Era a forma de se chegar lá. Este foi um aspecto importante que me fez, a mim e a muitos outros, descobrir o império.RH Valeu a pena?
NGM Em Portugal temos um problema de diminuição da comunidade dos historiadores. A população está a diminuir, os alunos nos cursos de História são cada vez em número menor, e piores. A historiografia brasileira, ao contrário, é uma das maiores do mundo, pela sua dimensão, pela sua qualidade também. Mas esta dimensão e esta diversidade, do meu ponto de vista, têm um conseqüência, e essa conseqüência tem uma implicação potencial. É que a história geral, a história comparada, quer da Europa, quer das Américas, tem sido feita, predominantemente, por historiadores anglo-saxônicos. Não há nenhuma razão objetiva, não há nenhuma razão histórica, intelectual ou até de recursos humanos, institucionais, para ser assim. Há todas as razões para que os historiadores do Brasil colonial estudem a história do seu país, mas também da monarquia de que fazia parte, da Europa ou das Américas. Não faz nenhum sentido que a história das Américas se faça só a partir da América do Norte. Eu penso que, sendo uma das melhores historiografias do mundo, o Brasil tem condições de inverter essa tendência e pôr fim a essa hegemonia.
Nuno Gonçalo Monteiro
Nuno Gonçalo Monteiro